SOBRE O VIVER

By Tiago Ferreira - 14.8.23

Não costumo falar sobre as nuances de força que carrego diariamente para vencer todos os percalços que recaem sobre meu cotidiano, mas já usei esse local de escrita para dissertar a respeito da resistência. Na maior parte do tempo estamos resistindo a algo, a alguém ou a alguma situação. Ponderamos sobre nossos limites para delimitarmos nossa reatividade dentro do espaço que consideramos aceitável. Saber se ponderar é uma tarefa bastante difícil, assim como saber o momento certo de não permitir sucumbir aquilo que deve ser dito, mostrado, evidenciado e aos nossos próprios limites que podem ser ultrapassados. Resistência também é uma daquelas palavras que possuem ambivalência em sua aplicação, pois pode significar sobre os dois pontos que destrinchamos nesse parágrafo: resistir aos percalços/resistir ao que confronta quem somos. No fim, acredito eu, estamos sempre falando de força.

Para conseguir gerenciar quem sou - e onde estou - adotei algumas condutas de sobrevivência. Parte da minha atual condição de existência determina que preciso ser respeitado, assim como preciso respeitar. Não estou falando sobre habilidades que dizem respeito a tolerância, pois não preciso ser tolerado e não encaro a existência de outras pessoas como algo passível de tolerância. Existo dentro da minha história e fortaleço meu caminhar reivindicando meus espaços, minha voz, minhas críticas, minha visão e meus gostos. Todos os dias eu preciso reivindicar algo diferente, pois corro o risco de ser sistematicamente apagado ou silenciado. Minha visão de mundo passou por um construto unilateral de sobrevivência, atribuindo ao que conheço do viver uma visão de algo potencialmente dolorido, cansativo e exaustivo. De fato, minha existência não está regada por satisfações, por alegrias, por conquistas e por uma série de coisas boas que tenho até dificuldade de elencar. Ainda aprendo sobre o respeito que tenho por mim, assim como aprendo diariamente sobre o momento em que esse respeito é questionado. 

Sobreviver é dizer sobre o viver por meio de uma série questões sem respostas, mas a vida cotidiana não é tão existencialista a esse ponto. Estamos o tempo todo resistindo ao meio, reafirmando nossos valores e crenças, e tentando ratificar aquilo que tomamos como verdade. A minha verdade é que a vida é cheia de percalços e eu preciso arranjar artifícios para permanecer sóbrio, lúcido e flertando com a coerência. Falo o que penso a quem interessa ouvir, assim como escuto aqueles que têm o que falar. Diante das circunstâncias, escolho articular a reciprocidade, mas também posso articular a não reação, posso articular o silêncio, posso articular o abandono. Só é capaz de corresponder às expectativas depositadas diante da existência quem preenche locais em que se vê inseguro, pois a insegurança é produto daquilo que nos faz mais humanos. Entretanto, falando da insegurança como sentimento engendrado pelos percalços da vida, só consegue transpassar esse sentimento de fragilidade quem se viu diante da necessidade de resistir.

"A morte brinca com balas nos dedos gatilhos dos meninos. Dorvi se lembrou do combinado, o juramento feito em voz uníssona, gritado sob o pipocar dos tiros:
— A gente combinamos de não morrer! Limpou os olhos. Lágrimas apontavam diversos sentimentos. A fumaça que subia do monturo de lixo, ao lado, justificava qualquer gota ou rio-mar que surgisse e rolasse pela face abaixo. Era a fumaça, desculpou-se consigo mesmo e cantarolou mordiscando a dor, a canção do Seixas: “Quem não tem colírio usa óculos escuros.”
A morte incendeia a vida, como se essa estopa fosse. Molambos erigem fumaça no ar. Na lixeira, corpos são incinerados. A vida é capim, mato, lixo, é pele e cabelo. É e não é. Na televisão deu:
— Mataram a mulher, puseram o corpo na lixeira e atearam fogo!
Dorvi respirou e aspirou fundo. Mas que merda, pó contaminado, até parece talco para pôr na bunda de neném. Pois é, meu filho nasceu. Um pingo de gente. Quando Bica me mostrou, nem tive coragem de olhar direito. Pequeno, tão pequeno! Deveria ter ficado na barriga da mulher, ou melhor, incubado como semente dentro do meu caralho. Quis cutucar o putinho com a ponta de minha escopeta. Bica se afastou como se o filho fosse só dela. Não sei para que o medo (EVARISTO, 2020)."

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EVARISTO, Conceição. Olhos d'água. 1. ed. [S. l.]: Pallas, 2020. cap. Luamanda, p. 107-108. ISBN 9788534705257.

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