SE SEMEARMOS RANCORES ENTRE NÓS, NÃO CONSEGUIREMOS FAZER HISTÓRIA

By Tiago Ferreira - 29.7.19


Você nasceu pobre, frequentador da escola publica, usuário assíduo do Sistema Único de Saúde, teve seu primeiro computador logo após a adolescência, usou os cursos de capacitação oferecidos pelo governo para enriquecer seu currículo, você enfrentou sol e chuva distribuindo currículos, fez entrevistas enquanto era analisado como objeto e recebeu o temido não por não se enquadrar nos parâmetros pré-estabelecidos - parâmetros estes que você nunca soube quais eram. Você foi perseguido nos corredores dos supermercados, nas lojas de roupas, de artigos para festa e não tinha paz para transitar sem que seus passos fossem marcados, acompanhados pelos olhos da desconfiança. Você não teve contado com a arte, não conheceu as obras de Van Gogh, não visitou os museus para apreciar amostras artísticas, não ouviu musicas consideradas cults, não sentou em rodas de conversas para debater politica, para debater a cotação do dólar. Você não conhece a geografia dos EUA, você não fala inglês avançado e nem intermediário, nunca sonhou em conhecer Paris, NY, Londres ou qualquer outro lugar que fugisse da sua realidade. Você foi colocado para crescer em meio ao desconhecido, viveu o lado da moeda que eles desconhecem, você cresceu sem ser ouvido, sem ser visto como gente, sem sair para os lugares que eles frequentam, sem sonhar os mesmos sonhos que eles sonham.

Depois que sua posição de cidadão foi assumida, ficava evidenciada a defasagem em sua história, em sua construção, em sua formação. Você conseguiu ser forte, ter a resistência das ruas, conseguiu criar voz para falar, conseguiu ecoar. Desde então correu atrás dos sonhos que cultivou, foi atrás do diploma, foi atrás da arte, foi atrás do som, foi atrás do seu lugar de fala. Encontrou-se livre num mundo que é seu por direito, e viu sua chance de inverter o jogo. Seu momento de falar, seu momento de revidar ainda era acompanhado pelos abutres que seguiam cercando cada uma das suas falas, cada uma das suas passagens e te espreitavam atentos pela estrada. Sua força, contida na cor da sua pele, te deu o direito de questionar a realidade que conheceu quando rompeu as algemas da opressão. Fez dos ensinamentos da rua os pilares do seu discurso, se protegeu com as armas que as ruas te entregaram e foi enfrentar a claridade que vivia fora da sua realidade como um guerreiro que discursa algo além do simples rancor.

E quem seria o rancor diante da vida que tem trilhado aquele que lutou por si, lutou por vários? Toda pessoa que escolhe guerrear tem direito de falar, tem direito de comparar, tem direito de questionar e tem direito de gritar. Você sabe das suas considerações, sabe da importância de não levar ao seu tumulo tudo que precisava falar. Você tem consciência que foram tirados séculos de direito para se fazer ouvida a sua gente, para se fazer ouvida a sua voz. Se a luta foi por igualdade, por liberdade, por respeito e por reparação histórica, por que você teve que vestir a coroa da vilania quando sua verdade teve que ser ouvida por todos aqueles que residem do outro lado da realidade? Que realidade cerca aqueles que não engolem o discurso, daqueles que se sentem ofendidos e agredidos? A realidade de luta com a pele clara, com a clareza da cultura, com a clareza do vinho bom, com a clareza do olhar de desconfiança que jamais recebeu, com a clareza de passear tranquilamente por qualquer lugar sem ser confundido com um assaltante. A clareza não pode compreender o desabafo, pois passou tempo demais preocupada em ser a heroína da história. De qual história estamos falando? Daquela em que desabafos e lutas são reduzidos a rancores do passado?

Você sabe o peso que o caminhar trouxe para todos aqueles que escolheram viver sua vida, assim como sabe que a guerra contra a opressão segue rumos históricos. Não resumimos as lutas em cores de peles, mas queremos que nossas verdades sejam ouvidas, sejam sentidas, sejam analisadas. Trilhamos um caminho árduo para buscar empoderamento, para buscar ato-estima, para abrir um livro de filosofia, para buscar compreensão na dor contida nas palavras da dona Maria que teve seus dois filhos presos. Buscamos o direito de sustentar nossa luta sem ser resumidos em vitimas, em vitimistas, em atores. Você deve saber que a sua luta sempre será diferente dos demais seres humanos que guerrearam diariamente e que nossos méritos ainda não se encontraram. Você também sabe que nenhum discurso possui o poder de te fazer menor, de te fazer pior, de te diminuir. Você também sabe que assumimos um compromisso de militar a favor do amor, mas, se semearmos rancores entre nós, não conseguiremos fazer história.

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