CHEIRO DE CAFÉ

By Tiago Ferreira - 22.3.20


Com o cheiro doce do café, inicio mais um dia. Ela sabe passar o café como mais ninguém. Nem tão forte, nem tão fraco. O cheiro perfeito se encaixa perfeitamente ao sabor. Os pássaros cantam na horta. Não existem tantas conquistas que justifiquem grandes alegrias por iniciar mais um dia, mas o silencio que enche a casa de vida é capaz de ecoar nosso agradecimento por termos uns aos outros. Hoje temos o essencial e nada mais. E talvez nem queiramos algo a mais. Ele desce as escadas sorridente, cheio de vida e energia. De nós três, ele sempre foi o mais otimista. Caminha pela casa conversando com todos os membros da família. Os pássaros resgatados e meus filhos de quatro patas já reconhecem sua voz. Estamos completos, temos tudo que precisamos.

O mundo que segue aguardando minha presença é tenso, é pesado, é exaustivo. Não existem motivos para fugir da luta, então tenho que vestir a coragem para enfrentar cada leão. Os medos, geralmente, são os mesmos de ontem, assim como basicamente as mesmas afrontas continuam trabalhando cotidianamente para me deixar exaurido. Estou fora do meu lar. Estou distante dele e distante dela. Estou em pé dentro da minha realidade. Aqui fora não tenho noção das dádivas que ainda não alcancei, pois minha preocupação está direcionada aos boletos que dia após dia seguem vencendo. Não cultivo mais que vinte quatro horas de vitória. Não almejo mais que dez horas de retorno ao que considero ser meu lar. Estou constantemente diante do caos, sentindo frio, tomando sereno e convivendo com o veneno. Não existem mais antidepressivos que sejam capazes de conter a tristeza, não existem mais analgésicos que amenizem a dor de cabeça e não tem mais dinheiro que compre qualquer relaxante muscular para a dor nas costas.

Estou jovem diante da luta, então escuto com calma o que ele e ela querem me dizer, me ensinar e me aconselhar. Me fiz um simples homem comum, criado por um homem comum e por uma mulher comum. Ao decorrer do caminho fui canonizando os santos dos meus milagres. O comum, pelo menos ao final de cada dia, é santo e único. Não há quem consiga dizer o contrário. A dor, independente da sua natureza, é banalizada quando sou capaz de lembrar que o amor está por perto, está palpável, está seguro, está maduro e é foco da reciprocidade. O milagre se tornou rotineiro e vem implícito no cheiro do café, no cantar dos pássaros, no sorriso espontâneo, no silêncio matutino e em todos os gestos que ainda conseguem passar despercebidos. Meu olhar conseguiu encontrar o valor da alma barateada pela exaustão, meu olhar se tornou capaz de observar o hoje em toda a sua majestade, meu olhar foi capaz de tornar o fruto do descaso o mais importante motivo de enfrentar a vida.

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