HOMOGENEIZAÇÃO DA DOR

By Tiago Ferreira - 15.12.20


É como se o mundo girasse e eu me incomoda-se com isso. É como se eu odiasse o nascer do sol, ficasse irritado com o novo dia, não quisesse uma nova chance, não fizesse por merecer o ar que respiro. Não dá para materializar o que sinto. O sentir é abstrato, é subjetivo, é de quem sente. O sentir é singular, não tem pluralidade, não tem como desenhar. Parece que eu desisti de fazer uma prece, que escolhi me esconder, que faço questão de sentir doer. Mas não tem explicação para as coisas que acontecem dentro de um coração. Não se materializa de maneira literal a dor, não se escreve o suficiente, não se fotografa as angustias da mente, não se pega nas mãos o coração em pedaços.

Como se seguíssemos uma receita, querem homogeneizar a dor. Querem que todos nós tenhamos os mesmos horrores, sintamos o mesmo medo e desistamos pelos mesmos motivos. É triste ver que a apatia vence a empatia a cada novo dia. E chamam de rede de apoio, chamam de desabafo necessário, chamam de amor. Não existem características únicas para quem simplesmente é visto como estatística, como número, como porcentagem. Criaram uma forma de minimizar a responsabilidade, de utilizar a impotência para justificar a negligencia, de se fazerem de interessados. Se a empatia está sendo manipulada, está sendo atrelada ao comodismo, como esperar que o amor floresça? Querem nos fazer acreditar que a importância se caracteriza pelo papel de ouvinte, pelas mensagens vazias de "como você está?", de ações que são vazias.

Teorizaram a luta daqueles que não consideram a possibilidade de apreciar a poética do amanhecer. Teorizaram as histórias de vida, as armas de batalha, as impossibilidades vividas. Banalizaram a dor de quem sustenta um sorriso no rosto, de quem viabiliza a vida pelos seus próprios esforços, de quem levanta da cama sem forças. Banalizaram o legado de quem venceu o rancor, venceu o sistema, venceu a tentativa de homicídio. Os amigos querem um caminho mais fácil para dizer que dão importância, os privilegiados querem uma forma fácil de enxergar a equidade. Se escondem atrás da correria do dia, os metidos a acadêmicos analisam na surdina os traços da dor, argumentam entre si a veracidade da história de outrem e objetificam o ser humano. Eles querem que as dores sejam uma só para que não precisem lembrar que cada número é um ser único.

Salve a alma de quem sabe o que vive e credibilize o caminhar de quem precisou deixar de andar.

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