RESENHA: OLHOS D'ÁGUA - CONCEIÇÃO EVARISTO

By Tiago Ferreira - 17.8.23

SINOPSE: Em Olhos d’água Conceição Evaristo ajusta o foco de seu interesse na população afro-brasileira abordando, sem meias palavras, a pobreza e a violência urbana que a acometem. Sem sentimentalismos, mas sempre incorporando a tessitura poética à ficção, seus contos apresentam uma significativa galeria de mulheres: Ana Davenga, a mendiga Duzu-Querença, Natalina, Luamanda, Cida, a menina Zaíta. Ou serão todas a mesma mulher, captada e recriada no caleidoscópio da literatura em variados instantâneos da vida? Elas diferem em idade e em conjunturas de experiências, mas compartilham da mesma vida de ferro, equilibrando-se na “frágil vara” que, lemos no conto “O Cooper de Cida”, é a “corda bamba do tempo”. Em Olhos d’água estão presentes mães, muitas mães. E também filhas, avós, amantes, homens e mulheres – todos evocados em seus vínculos e dilemas sociais, sexuais, existenciais, numa pluralidade e vulnerabilidade que constituem a humana condição. Sem quaisquer idealizações, são aqui recriadas com firmeza e talento as duras condições enfrentadas pela comunidade afro-brasileira.

Pensar em Conceição Evaristo é, de certa forma, pensar na gama de possibilidades literárias que circundam a literatura nacional contemporânea como uma verdadeira potencialidade. Detentora de uma escrita acessível com atravessamentos cotidianos expostos por meio de personagens da vida real, Evaristo apresenta Olhos d'água pela primeira vez em 2014. A proposta da obra, que engloba a narrativa por meio de marcadores sociais, é alcançada de maneira natural, conduzindo o leitor ao misto de emoções e sensações que somente a literatura é capaz de fazer.

"A morte brinca com balas nos dedos gatilhos dos meninos. Dorvi se lembrou do combinado, o juramento feito em voz uníssona, gritado sob o pipocar dos tiros:
— A gente combinamos de não morrer! Limpou os olhos. Lágrimas apontavam diversos sentimentos. A fumaça que subia do monturo de lixo, ao lado, justificava qualquer gota ou rio-mar que surgisse e rolasse pela face abaixo. Era a fumaça, desculpou-se consigo mesmo e cantarolou mordiscando a dor, a canção do Seixas: “Quem não tem colírio usa óculos escuros.”
A morte incendeia a vida, como se essa estopa fosse. Molambos erigem fumaça no ar. Na lixeira, corpos são incinerados. A vida é capim, mato, lixo, é pele e cabelo. É e não é. Na televisão deu:
— Mataram a mulher, puseram o corpo na lixeira e atearam fogo!
Dorvi respirou e aspirou fundo. Mas que merda, pó contaminado, até parece talco para pôr na bunda de neném. Pois é, meu filho nasceu. Um pingo de gente. Quando Bica me mostrou, nem tive coragem de olhar direito. Pequeno, tão pequeno! Deveria ter ficado na barriga da mulher, ou melhor, incubado como semente dentro do meu caralho. Quis cutucar o putinho com a ponta de minha escopeta. Bica se afastou como se o filho fosse só dela. Não sei para que o medo."

Buscar representatividade é uma tarefa que se tornou um pouco mais fácil nos dias de hoje, então Evaristo utiliza sua escrita para notoriamente dar voz aos que estão silenciados na vida cotidiana, evidenciando, inclusive, uma facilidade de induzir o leitor a refletir sobre aspectos sociais, de saúde, políticos e existenciais por meio de contos. Tendo como protagonistas mulheres, a obra torna evidente fragilidades de extrema relevância para discussões feministas, raciais e de gênero, mas também pondera a respeito da força que emana do feminino, da força que emana da mulher como símbolo de resistência, de articulação familiar e detentora do saber ancestral.

Com 15 contos muito bem escritos e devidamente amarrados, Olhos d'água entrega a figura do favelado pelo prisma do existencialismo, explorando aquilo que fere o que temos como mais importante: a humanidade. Temas como a esperança, dignidade, afetos, maternidade e paternidade, saudades, abandono e, de maneira geral, as atribuições da vida cotidiana entregam respostas para justificar a identificação do leitor com a obra. Evaristo também trabalha a figura do homem em sua narrativa, explorando os locais de subjetividade que essa figura ocupa dentro dos afetos.

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