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365 dias de medicação, de ajuste de medicação, de troca de medicação, de mais medicação e de vários comprimidos/dia. 365 dias semanalmente falando com um profissional da psicologia, buscando compreender, entender, arrumar, desarrumar, encaixar, curar, descobrir e simplesmente resistir ao que contraria a vida. 365 dias e não finalizo intacto, pelo contrário. Estou na luta diária - e é uma luta contra uma natureza indescritível. Bloqueio criativo, emudecimento da minha voz, alteração dos meus pensamentos, uma vontade louca de ficar na minha cama e o crescimento da crença de que a gente não vence aquilo que já nos venceu. A visão é deturpada, então preciso que semanalmente alguém me diga que não estou vencido. Confesso que parece uma guerra em que a gente só consegue acumular pequenas vitórias. Vamos aprendendo a abrir mão de certos territórios, deixando para trás certas importâncias e algumas das coisas que julgávamos relevantes.
Meu caso foi um pouco exaustivo, pois relutei a aceitar que adoeci, que estava doente, que estou doente. Foi custoso aceitar que o choro fácil, a falta de apetite, o desinteresse pelas coisas que me cativavam e a dificuldade de socializar não são características minhas, mas são sintomas de algo que está conflituando com quem sou. E nesse processo me desencontrei, deixei de saber quem era e o que buscava - ainda estou desencontrado. O que sobrou foram conflitos e medos. Medos que crescem em períodos e se fortalecem com determinados gatilhos. Tive que assumir a fragilidade, aceitar que tenho o direito de adoecer e que estar nesse processo reforça a minha humanidade - a mesma humanidade que tentam tirar de mim todes os dias. A gente fala de depressão com mais frequência hoje em dia, mas isso não quer dizer que as pessoas e as instituições estão abertas a lidarem com alguém adoecido. Iniciei o parágrafo comentando que meu caso foi exaustivo por eu relutar a aceitar estar doente, mas a exaustão também se deu ao ter que fingir que estou bem para conseguir acessar e/ou frequentar espaços como a universidade.
Sou acadêmico da saúde, porém a academia foi o espaço que mais agravou meu quadro clínico. Geralmente, a gente acolhe quem precisa ser acolhido e escuta com qualidade quem precisa ser ouvido. Além de acadêmico da saúde, sou profissional da saúde, logo estive atento ao que ocorreria quando eu sinalizasse estar doente. A depressão é uma doença abstrata causada por motivos multifatoriais, mas que se materializa em sintomas, então, mesmo a pessoa depressiva sendo obrigada a atuar estar bem, em momentos específicos os sintomas se sobressaem. Adaptações e acolhimento, assim como encorajamento e articulação são imprescindíveis - e eu não tive nada disso. Muitas pessoas me questionaram sobre o trancamento do curso e sobre a possibilidade de adiamento da minha formação, mas, mesmo estando doente, ainda enxergo o meu local e reconheço - mesmo que em momentos específicos - meu potencial. Sou aluno bolsista de uma instituição privada de ensino superior, sou quintanista, cursando o último semestre e jamais deixei de cumprir com o maior rigor os meus papeis como discente, sempre reconhecendo esses papeis como potenciais de fala, questionamentos e pertencimento. Eu não posso deixar de falar sobre os recortes que acentuam ainda mais o tratamento que recebi como aluno: preto, lgbt e fortemente posicionado. A academia, por meio de seus processos institucionais, retirou de mim a humanidade, a mesma humanidade que a depressão me rouba dia após dia. Vivi momentos de tensão, de perseguição, de silenciamento, de reprovação. Por quê? Eu não estava de acordo com o que era esperado: um aluno comum desenvolvendo atividades comuns.
Esbarrei, durante esse processo saúde/doença, na normatividade, contrariando os sinais de entusiasmo, de contentamento, de aceitação, de submissão e de alguém naturalmente normal. Imaginei que pudesse coexistir em alguns espaços com alguns dos meus sintomas, pois eu não preciso ser normal para desempenhar determinados papeis e atividades. Me faltou conhecimento técnico e científico? Me faltou traquejo social e articulação interpessoal? Me faltou boa apresentação e capacidade de resolução de problemas? O que a depressão interferiu e o que foi interferido por quem não esteve atento ao que eu precisava como ser humano?
Eu retomo bastante a palavra humano e a palavra humanidade, pois as duas sinalizam que é necessário que muito de nós seja expelido ao mundo. Expelir não é esperar receptividade e aceitação, mas é encarar o direito de ser e de estar. Modulamos quem somos para estarmos em locais de maneira transitória, mas e quando perdemos essa habilidade ou ela se prejudica por inúmeros fatores? 365 dias de sofrimento - e falo isso sem medo de soar como algo negativo, pois me reservo o direito de ser sincero. E não desisti, mesmo tentando desistir, almejando o desistir, flertando com o desistir. A depressão me ensinou que as pessoas não vão separar você da sua doença. Eu fui pego como um problema exponencial, tendo minhas potencialidades excluídas e fui enfiado num saco preto de evitações. Ninguém tá esperando um preto periférico adoecer e questionar quem ocupa locais de poder - e essa é uma verdade absoluta da minha jornada por esses 365 dias.
Não estou curado e ainda busco a estabilização. O que me resta é continuar o tratamento proposto, mas 2023 me deixa com um débito de desesperança gigantesco e uma visão ainda mais prejudicada dos processos de ensino e aprendizado, dos processos de saúde e doença e de como o racismo estrutural me espera mesmo estando doente. E eu preciso falar do racismo, pois vi e ouvi outras experienciais exitosas com quem não compartilha comigo dos mesmos empecilhos raciais. Parafraseando Emicida e Belchior: "ano passado eu sobrevivi, mas esse ano tentaram me matar."

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