365 DIAS CONVIVENDO COM A DEPRESSÃO

By Tiago Ferreira - 1.12.23


Aqui estou eu aberto a falar sobre o tema que mais impactou minha vida em 2023. Sintomas, diagnóstico nas mãos, plano terapêutico e um dia de cada vez. Bom, queria que tivesse sido um dia de cada vez, mas teve dias que nem foram. Tenho depressão e passei por períodos de agravamento da doença. É bom começarmos a chamar de doença, pois existe quem ainda acredita que não se trata disso. Doente, me afastei do trabalho, me afastei das pessoas, me isolei do mundo, mas tentei seguir algumas das minhas rotinas diárias - aquelas que não tem como evitar, no meu caso foi a universidade. A gente tenta, mesmo com o diagnóstico e os sintomas agravados, seguir a rotina, seguir o cronograma, seguir com o modelo de vida que exclui o direito de estar doente.

365 dias de medicação, de ajuste de medicação, de troca de medicação, de mais medicação e de vários comprimidos/dia. 365 dias semanalmente falando com um profissional da psicologia, buscando compreender, entender, arrumar, desarrumar, encaixar, curar, descobrir e simplesmente resistir ao que contraria a vida. 365 dias e não finalizo intacto, pelo contrário. Estou na luta diária - e é uma luta contra uma natureza indescritível. Bloqueio criativo, emudecimento da minha voz, alteração dos meus pensamentos, uma vontade louca de ficar na minha cama e o crescimento da crença de que a gente não vence aquilo que já nos venceu. A visão é deturpada, então preciso que semanalmente alguém me diga que não estou vencido. Confesso que parece uma guerra em que a gente só consegue acumular pequenas vitórias. Vamos aprendendo a abrir mão de certos territórios, deixando para trás certas importâncias e algumas das coisas que julgávamos relevantes. 

Meu caso foi um pouco exaustivo, pois relutei a aceitar que adoeci, que estava doente, que estou doente. Foi custoso aceitar que o choro fácil, a falta de apetite, o desinteresse pelas coisas que me cativavam e a dificuldade de socializar não são características minhas, mas são sintomas de algo que está conflituando com quem sou. E nesse processo me desencontrei, deixei de saber quem era e o que buscava - ainda estou desencontrado. O que sobrou foram conflitos e medos. Medos que crescem em períodos e se fortalecem com determinados gatilhos. Tive que assumir a fragilidade, aceitar que tenho o direito de adoecer e que estar nesse processo reforça a minha humanidade - a mesma humanidade que tentam tirar de mim todes os dias. A gente fala de depressão com mais frequência hoje em dia, mas isso não quer dizer que as pessoas e as instituições estão abertas a lidarem com alguém adoecido. Iniciei o parágrafo comentando que meu caso foi exaustivo por eu relutar a aceitar estar doente, mas a exaustão também se deu ao ter que fingir que estou bem para conseguir acessar e/ou frequentar espaços como a universidade.

Sou acadêmico da saúde, porém a academia foi o espaço que mais agravou meu quadro clínico. Geralmente, a gente acolhe quem precisa ser acolhido e escuta com qualidade quem precisa ser ouvido. Além de acadêmico da saúde, sou profissional da saúde, logo estive atento ao que ocorreria quando eu sinalizasse estar doente. A depressão é uma doença abstrata causada por motivos multifatoriais, mas que se materializa em sintomas, então, mesmo a pessoa depressiva sendo obrigada a atuar estar bem, em momentos específicos os sintomas se sobressaem. Adaptações e acolhimento, assim como encorajamento e articulação são imprescindíveis - e eu não tive nada disso. Muitas pessoas me questionaram sobre o trancamento do curso e sobre a possibilidade de adiamento da minha formação, mas, mesmo estando doente, ainda enxergo o meu local e reconheço - mesmo que em momentos específicos - meu potencial. Sou aluno bolsista de uma instituição privada de ensino superior, sou quintanista, cursando o último semestre e jamais deixei de cumprir com o maior rigor os meus papeis como discente, sempre reconhecendo esses papeis como potenciais de fala, questionamentos e pertencimento. Eu não posso deixar de falar sobre os recortes que acentuam ainda mais o tratamento que recebi como aluno: preto, lgbt e fortemente posicionado. A academia, por meio de seus processos institucionais, retirou de mim a humanidade, a mesma humanidade que a depressão me rouba dia após dia. Vivi momentos de tensão, de perseguição, de silenciamento, de reprovação. Por quê? Eu não estava de acordo com o que era esperado: um aluno comum desenvolvendo atividades comuns.

Esbarrei, durante esse processo saúde/doença, na normatividade, contrariando os sinais de entusiasmo, de contentamento, de aceitação, de submissão e de alguém naturalmente normal. Imaginei que pudesse coexistir em alguns espaços com alguns dos meus sintomas, pois eu não preciso ser normal para desempenhar determinados papeis e atividades. Me faltou conhecimento técnico e científico? Me faltou traquejo social e articulação interpessoal? Me faltou boa apresentação e capacidade de resolução de problemas? O que a depressão interferiu e o que foi interferido por quem não esteve atento ao que eu precisava como ser humano?

Eu retomo bastante a palavra humano e a palavra humanidade, pois as duas sinalizam que é necessário que muito de nós seja expelido ao mundo. Expelir não é esperar receptividade e aceitação, mas é encarar o direito de ser e de estar. Modulamos quem somos para estarmos em locais de maneira transitória, mas e quando perdemos essa habilidade ou ela se prejudica por inúmeros fatores? 365 dias de sofrimento - e falo isso sem medo de soar como algo negativo, pois me reservo o direito de ser sincero. E não desisti, mesmo tentando desistir, almejando o desistir, flertando com o desistir. A depressão me ensinou que as pessoas não vão separar você da sua doença. Eu fui pego como um problema exponencial, tendo minhas potencialidades excluídas e fui enfiado num saco preto de evitações. Ninguém tá esperando um preto periférico adoecer e questionar quem ocupa locais de poder - e essa é uma verdade absoluta da minha jornada por esses 365 dias.

Não estou curado e ainda busco a estabilização. O que me resta é continuar o tratamento proposto, mas 2023 me deixa com um débito de desesperança gigantesco e uma visão ainda mais prejudicada dos processos de ensino e aprendizado, dos processos de saúde e doença e de como o racismo estrutural me espera mesmo estando doente. E eu preciso falar do racismo, pois vi e ouvi outras experienciais exitosas com quem não compartilha comigo dos mesmos empecilhos raciais. Parafraseando Emicida e Belchior: "ano passado eu sobrevivi, mas esse ano tentaram me matar."



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