SOMOS UMA REDE

By Tiago Ferreira - 31.3.21


Pedaços de sonhos estão remendados e decoram o quarto, decoram a sala, decoram o quintal. Promessas desfeitas compõem a decoração, são expostas nas páginas escritas que estão dispostas em cima da mesa. Um amontoado de amores desfeitos estão expostos na estante como troféus e referenciam as tentativas de vivenciar algo pleno, algo real. E esses são os atributos da vida. Uma vasta gama de impossibilidades, de coisas quebradas e amontoadas. Essas são as conquistas obtidas em todas as tentativas, em todas as tratativas, em todas as narrativas e em todas as potencialidades exploradas enquanto percorremos a vida.

Como corpos vazios e sistemas restaurados, somos reprogramados a cada nova desilusão. As histórias de desamor crescem a cada novo dia. A cada nova impossibilidade, nos tornamos mais insensíveis. O plano é sobreviver depois de cada derrota para mostrarmos que somos além das falcatruas da vida. Estamos sujeitos a não desistir. Não podemos entregar as propostas não contempladas para o tempo, assim como não seremos bem recebidos se decidirmos expor toda morbidade que fermenta em nossas entranhas. O plano é seguir reprogramando até que o sistema consiga rodar sem travar, sem oscilar. O esperado é que, ao fim de cada dia, consigamos fazer um balanço sobre o pouco de humanidade que deixaremos morrer para que estejamos prontos para o amanhã. Precisamos operacionalizar a dor.

Cultivamos nossa desesperança expondo nossas derrotas. E não interessa se estamos aos frangalhos, se estamos no limite, se não conseguimos mais, se não queremos mais. Não importa se está doendo, se está ardendo, se está queimando ou se não existem remédios para tratar os sintomas. O sufocamento é coletivo, mas não existe apelo, não existe socorro, não existe ajuda. Estamos conectados a uma rede de tentativas diárias que está lentamente deixando de lado a humanidade para continuar caminhando por caminhos contrários. Tudo dói e a necessidade de mostrar autocontrole foi definida como prioridade. Não podemos flertar com a desistência, pois determinamos um pacto de resistência. Até quando é suportável colecionar sonhos que deixaram de ser sonhados? Até que ponto a dor é tolerável?

Não existiu delimitação de limites. Aprendemos que é fundamental suportar tudo que atente contra a nossa existência. Só podemos revidar se for devolvendo algo que não seja a dor. Só podemos revidar demonstrando que não doeu, que não corroeu, que não ceifou. Só podemos revidar se for seguindo com nossas vidas insignificantes, sem qualquer sintoma de mágoa ou rancor. Temos que engolir qualquer ataque e permanecer íntegros para a reprogramação: você é forte, você é indestrutível, você precisa permanecer em pé. Você pode viver sem comida, você pode viver sem remédios, você pode permanecer vivo sem ter acesso ao sistema de saúde, você consegue um bom emprego sem uma boa educação, você não precisa de um celular de última geração, você não precisa de um óculos para enxergar, você consegue estudar sem eletricidade, você pode ter uma higiene exemplar sem água, você não precisa de livros para ler e você pode se contentar com o que tem. Entoe seu mantra e engole a revolta. Não podemos dar novos significados para nossas tentativas de sobrevivência, pois já concluímos que é essa a concepção que precisamos para acreditarmos que estamos vivos.

Engole tudo que parece te ferir e vá se aprontar para o amanhã. Sem poder viver as plenitudes da vida, sem ter do que se orgulhar e sem poder cultivar uma revolução, seguimos os mesmos caminhos como uma única e estável rede. Não falo de uma rede de apoio. Falo sobre uma rede de conformação. Fomos devidamente reprogramados e a cada novo dia matamos um pedacinho da nossa humanidade. Tivemos opções de pleitear um levante, mas escolhemos a facilidade de permanecer amontoando sonhos em cada reprogramação.

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