SE EU ME CANSAR DESSE PAPEL

By Tiago Ferreira - 23.3.21


É como se eu pudesse me transformar no próprio horror, me fazer autor da minha própria sombra, me colocar no centro da guerra. É como se eu pudesse me transformar num guerrilheiro de uma guerra contra minhas próprias certezas. É como se eu mesmo pudesse inventar as minhas limitações, pudesse ter controle sobre as minhas lágrimas, pudesse fazer fechar o tempo para os dias ensolarados. É como se eu fosse o único criador dos meus dramas, como se gostasse de sofrer, como se flertasse com a dor e fizesse me cansar de viver. É como se eu cuidadosamente despetalasse todas as flores para cancelar a primavera, soprasse um vendaval para abalar qualquer estrutura, arrancasse cada folha das árvores, apagasse as cores do mundo e escrevesse palavras que fossem capazes de destituir a alegria do seu lugar.

Como se eu planejasse as incertezas dos passos que darei, estou quietinho com meus monstros. Depois de perceber que não sou o portador da calma, escolhi silenciar a minha alma. Estou quietinho para não conseguir sabotar a história que estou a escrever. E quem me viu confabular contra a minha própria existência, hoje me relaciona com a figura do mal. Sou bom moço, mas escondo meus monstros de mim. Estou dentro desse papel bem escrito, sendo vilão, sendo mocinho, sendo protagonista, sendo figurante, sendo o diretor de arte. É como se eu pudesse ser eu, mas tivesse apenas grandes capítulos para ser eu ontem e sem qualquer possibilidade de escrever o eu de amanhã. Não sorrio para os dias que não foram capazes de me encher de fôlego para ver chegar o amanhã. Não escuto as vozes que não foram capazes de melodiar as minhas expectativas sobre o presente. É como se eu tivesse que temer a mim mesmo para estar no meu lugar, para conseguir falar, para conseguir justificar quem sou. Falta ar, falta coragem, falta mobilidade, falta espontaneidade, falta veracidade e falta espaço para circular. É como se eu adorasse me sabotar, amasse me ver invalidado e quisesse me ver no cantinho, quieto e apagado.

É como se eu pudesse me transformar nas dores que cultivei para conseguir fazer doer as dores que eu mesmo planejei. Meu peito transborda angústias, mas já não tenho certeza se estou habilitado a compartilhar sobre quem desejei ser amanhã. É como se eu pudesse me apagar, me fazer cair, me fazer machucar. Os passos que dei são como pegadas. As pegadas que deixei por lugares que passei foram apagadas por mim ontem. Só eu posso ser eu. Só eu tenho o direito de despetalar as minhas flores. Só eu posso descolorir as cores. Só eu posso me fazer cair ontem. Só eu posso transformar a primavera em outono, de fazer o verão virar inverno. Só eu tenho o coração gelado o suficiente para esquecer as propriedades do amor. Só eu posso me esquivar do carinho, do cafuné e das mãos dadas ao entardecer. Só eu posso evitar abraços, posso esquecer de dizer sobre o amar, posso não sentir saudade. 

Todos me viram dizer que sustento o que me tornei em tão pouco tempo. E se eu pudesse conviver em paz com a minha solidão, ligaria o som no último. Tocaria todas as músicas que ainda não escutei e deixaria de guerrear com as possibilidades que eu mesmo boicotei. Teria a chance de gostar sem me preocupar com os poréns, sem me preocupar com as expectativas, sem me fazer lembrar das infelicidades que ainda estão por vir. Eu gosto dos dias nublados. Só eu sou eu. Só eu posso decidir sobre aquilo que sou. Só eu posso ser meu verdadeiro amor. Só eu posso gostar das músicas que nunca escutei. Só eu posso observar meu passado sem me envergonhar dos passos que dei. Só eu posso perder as palavras, posso levantar e deixar a cena. Só eu posso ouvir minhas orações, posso articular meu monólogo, posso modificar minhas próprias memórias. Só eu posso ser eu. E se um dia desses eu me cansar desse teatro, deixo que alguém protagonize meu espetáculo, suba ao palco e encarne a personagem para que me substitua nesse papel.


Fotografia de Olívia Vieira.

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