RESENHA: AMARELO | EMICIDA

By Tiago Ferreira - 22.2.25


"amar é um elo
entre o azul
e o amarelo"

Paulo Leminski


Alguns trabalhos que já apresentei aqui no Limoções fizeram ou fazem parte da minha trajetória como pessoa comum. Alguns trabalhos ficam na linha do tempo do meu viver, lembranças de melodias e letras que me refazem tomar sentido dentro da minha própria história. Afunilando um pouco meu contato com outras obras, vejo como imperativo sinalizar aqui a importância da música. Quem me conhece - e lê o que escrevo - sabe que sou o fã #1 de álbuns musicais que possuem conceito, causa, inferências e referências e delineiam histórias ou outras causas.

Quando cheguei ao rap como ouvinte, depois de tomar liberdade etária para confrontar meus pais - que possuem estigmas sobre o gênero -, me deparei com rimas e versos que gritavam a periferia, que exigiam olhar para a periferia ou que simplesmente duelassem sobre quem tem o cordão de ouro maior. Todos esses artistas e trabalhos são importantes e atemporais, e isso é inquestionável. Como toda produção preta (ou uma produção branca com cara preta), a cena musical do rap preenchia os subúrbios das ruas de cidades grandes como São Paulo. A divisão geográfica da capital São Paulo em Centro, Zona Leste, Zona Sul, Zona Norte e Zona Oeste atribui ritmos e visões diferentes, mantendo a pluralidade de um gênero musical marginalizado. E foi assim que me encontrei na cultura Hip-Hop, entendendo inclusive a cultura do mestre de cerimônias (MC). Meus ouvidos ouviam desabafos, gritos, movimentos de insatisfação popular e também ouviam histórias daqueles que movimentam o Brasil - os trabalhadores. Esse processo da música, por meio de um gênero musical naturalmente politizado, me ajudou a compreender meu lugar, minha história e me incentivou a encontrar as minhas referências.

Tomo a tarefa de falar sobre música, um álbum, mas retomo a regra: não analiso o trabalho por completo. Bora ao que interessa!

Enquanto  Minha  Imaginação  Compor  Insanidades  Domino  Artes

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AmarElo (2019) - Emicida

Chegamos ao álbum mais recente do Emicida. Carregando nos ombros as expectativas do mercado musical brasileiro, AmarElo nasce com a tarefa de dar ao rap - ou ao movimento hip-hop - o encontro com outros gêneros musicais de maneira orgânica, organizada, sonoramente comercial e inédito. O encontro do rap com o samba já aconteceu em outros trabalhos do artista, então a pluralidade não estaria de fora. Confesso que quando ouvi o primeiro single "Eminência Parda" imaginei que teríamos mais um álbum que colocasse nossas dores no pacote de entretenimento das plataformas digitais. Obviamente que utilizar a arte, ainda mais a música, para expor a luta, visibilizar causas e tornar ferramenta de politização de pautas importantes é algo inquestionável. Para além das minhas expectativas, o que ficou claro e evidente era que teríamos na música variabilidade linguística e até mesmo internacional.

"Muriquinho piquinino, muriquinho piquinino
Purugunta aonde vai, purugunta aonde vai" - Dona Onete

Pretoguês é uma variação da língua portuguesa. Impossível não tocar no nome de Lélia Gonzalez - intelectual brasileira do ativismo preto no Brasil - que levou esse modo de falar para a academia e, na contemporaneidade, o autor Gabriel Nascimento. Papillon, participação internacional, nos desloca da bolha artística e abre espaço para que o mercado musical espere ainda mais nomes e sotaques diversos nos trabalhos contemporâneos. Ainda, chamo a atenção para o espaço cedido - ou convite realizado - a um rapper europeu.


"OK
Eram rancores abissais (mas)
Fiz a fé ecoar como catedrais
Sacro igual Torás, mato igual corais
Tubarão voraz de saberes orientais
Meu cântico fez do Atlântico um detalhe quântico
Busque-me nos temporais (vozes ancestrais)
Num se mede coragem em tempo de paz
Estilo Jesus 2.0 (carai, Jesus 2.0)
Caminho sobre as água da mágoa dos pangua
Que caga essas regra que me impuseram
Era um nada, hoje eu guardo o infinito
Me sinto tipo a invenção do zero
Não sou convencido (não), sou convincente
Aí, vê na rua o que as rima fizeram" - Emicida

A importância de trazer para o debate contemporâneo a palavra "parda" em conjunto com "eminência" abre um leque de possibilidades. Primeiro, quero falar sobre o colorismo, termo que utilizamos para situar o sujeito que ainda compreende ou já compreendeu seu lugar na miscigenação no Brasil. Temos pretinhos e pretinhas de vários tons de pele, e é importante essa consciência para chegarmos até a eminência. A palavra "eminente" foi utilizada em diversos momentos históricos, mas, nessa canção, conceituo como aquilo que está atrelado ao poder em ser, em estar e em preencher espaços que outrora não pertenciam aos de pele escura - seja lá o tom imposto. Como sinônimo, a palavra "eminência" tem: "importância" e "superioridade".
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"Presentemente eu posso me
Considerar um sujeito de sorte
Porque apesar de muito moço
Me sinto são e salvo e forte
E tenho comigo pensado
Deus é brasileiro e anda do meu lado
E assim já não posso sofrer no ano passado..." Belchior/Majur


Chegando ao que muitos consideram a culminância do trabalho, Emicida entrega AmarElo como single, faixa de título homônimo ao álbum, com a participação de Majur e Pablo Vittar. Juntos, retomam o trabalho de Belchior (Sujeito de Sorte) como sample. Além da presença marcante da letra de Sujeito de Sorte na introdução, temos Emicida empoderando com o rap, enquanto Majur - com timbre de voz único - traz a letra do sample a cada refrão. O rap, assim como todo o mercado no geral, entendeu a representatividade como algo verdadeiramente importante, então, cantando com Majur, temos Pablo Vittar fechando o trio da diversidade.

"[...] Mano, rancor é igual um tumor, envenena a raiz
Onde a plateia só deseja ser feliz (ser feliz)
Com uma presença aérea
Onde a última tendência é depressão com aparência de férias
Vovó diz: Odiar o diabo é mó boi (mó boi)
Difícil é viver no inferno, e vem à tona
Que o memo império canalha que não te leva a sério
Interfere pra te levar à lona (revide)..." - Emicida


Importante destacar que a engenharia musical trabalhou com bastante destreza os vocais das convidadas. Majur vocaliza a canção praticamente por completo. Pablo Vittar segurou o auge do refrão com seus agudos, enquanto Majur também sustentou notas altas. Emicida escolheu "AmarElo" para empoderar e trabalhou a tratativa de recuperar a autoestima do público que consome os trabalhos dos três artistas. Fora do Brasil o encontro do rap/hip hop com pop na música não é novidade. Por aqui esse tipo de parceria tem ganhado força e significados: letras com conteúdo.


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A literatura, sempre citada e presente nos trabalhos de Emicida, ganha narração de Fernanda Montenegro na faixa "Ismália" com poema de título homônimo de Alphonsus de Guimaraens.

"Quando Ismália enlouqueceu
Pôs-se na torre a sonhar
Viu uma lua no céu
Viu outra lua no mar
No sonho em que se perdeu..." - Montenegro/Alphonsus


A letra da canção, assim como o poema de Alphonsus, mergulha nas entrelinhas da melancolia, transformado a canção em uma narrativa nua e crua das mazelas do Estado. As "acusações" que o rapper explicita no trabalho, garantem a máxima exposição de acontecimentos noticiados pela grande mídia, assim como questiona a normalidade em que as notícias sobre os dramas da periferia são consumidos por nichos específicos da sociedade. Nessa canção, o rap encontra-se puro e a poesia só cumpre seu papel: constrói uma ponte direta entre o autor e seu leitor, abrindo espaço para a criação de laços e de agregação de valores.

"Paisinho de bosta, a mídia gosta
Deixou a falha e quer medalha
de quem corre com fratura exposta
Apunhalado pelas costa
Esquartejado pelo imposto imposta
E como analgésico nós posta que
Um dia vai tá nos conforme
Que um diploma é uma alforria
Minha né uniforme" - Emicida


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"Noêmia de Souza chamava de lume" - Emicida

Eu não poderia chegar em "Cananéia, Iguape e Ilha Comprida" sem destacar o verso em que Noêmia de Souza é citada. Escritora africana¹, a obra de Souza que, provavelmente, refere-se ao que ele tomou por interpretação do poema "Súplica" para musicalizar ou fazer a inferência pontual na faixa. A canção, como esperado, traz vocalizações de crianças - indicando a possível participação das filhas do rapper. Emicida traz paternidade para o trabalho musical sempre que possível. Seja mencionando as filhas ou usando as vozes das crianças, poetizando suas canções. Aliás, o rapper falou muito sobre paternidade em entrevistas e descreveu a paternidade como uma influência inevitável para o seu trabalho como compositor e produtor.

"[...] Podem desterrar-nos,
levar-nos
para longes terras,
vender-nos como mercadoria,
acorrentar-nos
à terra, do sol à lua e da lua ao sol,
mas seremos sempre livres
se nos deixarem a música!
Que onde estiver nossa canção
mesmo escravos, senhores seremos;
e mesmo mortos, viveremos.
E no nosso lamento escravo
estará a terra onde nascemos,
a luz do nosso sol,
a lua dos xingombelas,
o calor do lume,
a palhota onde vivemos,
a machamba que nos dá o pão!..." - 

Importe seguir falando sobre a faixa e o contraste que ela possui com o poema de Nôemia. Carregada por carinho e afeto, a canção contrasta com o pedido de Souza em seus versos: "mas seremos sempre livres se nos deixarem a música!". Musicalizar e recitar, transformar as linhas fortes da autora em amor e carinho, fazendo brilhar a importância de um movimento que o álbum trabalha do início ao fim: amor. E podemos usar o verbo "amar" para referenciar uma causa: a resistência.
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Finalizo pelo começo do álbum. "Principia" abre AmarElo com as participações de Fabiana Cozza, Pastor Henrique Vieira e Pastoras do Rosário. A música é uma oração do início ao fim, mesmo tendo uma oração "oficial" realizada pelo Henrique Vieira ao término da faixa.

"Com o cheiro doce da arruda
Penso em buda, calmo
Tenso, busco uma ajuda
Às vezes me vem um salmo
Tira a visão que iluda, é tipo um oftalmo
E eu, que vejo além de um palmo
Por mim, tu, Ubuntu, algo almo
Se for pra crer no terreno
Só no que nóis tá vendo memo
Resumo do plano é baixo, pequeno
Mundano, sujo, inferno e veneno
Frio, inverno e sereno
Repressão e regressão
É um luxo ter calma, a vida escalda
Tento ler almas pra além de pressão
Nações em declive na mão desse Barrabás
Onde o milagre jaz
Só prova a urgência de livros
Perante o estrago que um sabre faz
Imersos em dívidas ávidas
Sem noção do que são dádivas
No tempo onde a única que ainda corre livre aqui são nossas lágrimas
E eu voltei pra matar, tipo infarto
Depois fazer renascer, estilo um parto
Eu me refaço, farto, descarto
De pé no chão, homem comum
Se a bênção vem a mim, reparto
Invado cela, sala, quarto
Rodei o globo, hoje tô certo de que
Todo mundo é um" - Emicida

Como se trata de uma faixa de abertura, Emicida traz em seus versos pontos importantes: características de suas crenças, evidencia a música como ferramenta de autocuidado ou de auto-observação, também conceitua o impacto e os locais em que projeta o alcance de seu trabalho e não poupa em deixar claro que o nascimento de seu novo trabalho está intrinsecamente atrelado ao conceito de partilha.

"Vejo a vida passar num instante
Será tempo o bastante que tenho pra viver?
Não sei, não posso saber
Quem segura o dia de amanhã na mão?
Não há quem possa acrescentar um milímetro a cada estação
Então, será tudo em vão? Banal? Sem razão?
Seria, sim, seria se não fosse o amor
O amor cuida com carinho, respira o outro, cria o elo
No vínculo de todas as cores, dizem que o amor é amarelo
É certo na incerteza
Socorro no meio da correnteza
Tão simples como um grão de areia" - Pastor Henrique Vieira

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