A FRUTA PODRE

By Jade Tresca - 11.7.20


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Chegamos à antiga casa para fazer uma faxina. A casa estava exatamente como eu deixara: vazia, suja, cinza e nostálgica. Cinza como o céu naquele dia. Chegamos ali e começamos a limpar, gradativamente. Arrastamos o que ainda havia de móveis e madeiras. Começamos pela mancha da parede, passando pelas teias de aranha, até varrer o chão. Foi quando me deparei com ela, a fruta podre. Demorei para notar que aquela sujeira, bem no cantinho da parede, aquela bola de sujeira, na verdade, era ela. Sabe lá desde quando estava ali! Como era possível? A fruta podre nunca deu indícios nem cheirava mal. Só estava ali. Todo esse tempo. Crescendo a cada dia em seu bolor. A fruta podre não incomodaria por um bom tempo. Ali, sozinha, quietinha, sem cheirar, sem deixar sujeira aparente, poderia passar uma vida. Desde que ninguém a visse nem fosse tocada. Mas anos após anos, mesmo sem incomodar, chegaria a hora em que a fruta podre seria descoberta. Confesso que me foi chocante. Como? No ambiente em que eu passava meus dias, dormia, transitava, varria. 

Como eu pude coexistir com a fruta podre?

A fruta podre assemelha-se a um tumor. Surge silencioso, se escora num canto, não incomoda, não causa dor, de primeiro momento. Em seu cantinho confortável, se alimenta de tudo o que é bom ao organismo, que aos poucos definhará e morrerá. O tumor pode passar uma vida sem ser descoberto. Mas quando o organismo que o alimenta resolve cutucá-lo, ele resolve mostrar que existe. Não é fácil achar um tumor que se esconde em um lugar de difícil acesso. Também não é fácil remover um tumor. Ele se espalha. Multiplica-se. Tenta voltar ao seu lugar confortável. Ele é como um polvo que te abraça com seus oito braços de uma só vez. E como cortar todos os braços, quando eles já criaram raízes profundas e sugaram tudo de bom que havia em você? Todos os seus nutrientes, esperanças, alegrias, potências. Contudo, da sua descoberta, não se pode negar: é morte ou vida. Da mesma forma é com a fruta podre, que uma vez encontrada, será jogada no lixo. Diante da fruta podre, não há morte ou vida, pois a fruta podre já morreu há muito tempo. 

Fruta podre, você pôde ser fruta sadia um dia. Mas certa vez você caiu, se escorou e ali ficou. Fruta podre, um dia você pôde ser alimento. Rica em nutrientes e vitaminas. Bela, macia, suculenta. Fostes colhida para ser sustento, para trazer vida. De sua carne jorrava o mais doce suco. Quando foi, fruta podre, que caístes? Que não mais quis ser encontrada? Fugistes das tentativas de ser encontrada e varrida ainda boa. 

Fruta podre, quem dera fostes inanimada. Antes fosse apenas uma fruta embolorada. 

Mas tens vida e já não pode vivê-la. De doce, tornastes amarga. Indigesta. A cada dia, cresce o bolor da sua amargura e desamor. Cresceu tanto que acabou por ser achada. Não adianta mais te lavar. Te regar. Não adianta mais te amar. O tumor se alimentou, alimentou, mas não trouxe nada de bom. Por onde passa, se alastra e traz dor. Por onde passa deixa o seu bolor. Eu tentei te deixar no seu cantinho seguro. Deixei sugar o que precisava, sem perceber que eu definharia um dia. Fruta podre, sentistes no direito de ser podre. Se estar escorada. Achando que poderia passar sua vida assim, sem incomodar. Um tumor que não sabe que morrerá junto daquele que o alimenta. Não é capaz de perceber seu próprio bolor? Será que ainda se sente fruta sadia? Ainda aponta o podridão das outras frutas?

A fruta podre é fruto da negligência. Com ela mesma e com tudo o que a cerca. Sua negligência foi descoberta. Nunca mais terás lugar escuro e úmido para se esconder. Fruta podre, diferente de você, eu ainda tenho vida. Corre suco pelas minhas veias. Um dia pude cair, me escorar e me embolorar, mas eu escolhi ficar. 

Fruta podre, quem dera fostes inanimada. Talvez assim, não tivesse tanto rancor. Não causaria tanta dor a quem só te quis bem. Mas hoje já não há escolha. Fostes encontrada, recolhida e jogada. Para mim, nem adubo podes ser. Que outra terra faça adubo de ti. E, quem sabe assim, sejas generosa, enfim.


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