O QUE CONCLUO SOBRE A SOLIDÃO?

By Tiago Ferreira - 8.2.21


Como um sentimento que está atrelado a outros sentidos e sentires, a solidão me causou inúmeras dores e dezenas de desconfortos. Me recordo com clareza tudo que fora proporcionado pela reclusão, exclusão e rejeição. Não poderia discorrer esse nosso diálogo pautado em gratidão e elevação sem vestir todos os meandros que permearam minha vida solitária. Para isso, preciso incluir como aspectos fundamentais da minha percepção de solidão a falta de afetividade, a dificuldade de receptividade e o desinteresse por relações rasas. Com uma personalidade seletiva e incisiva, nunca fui capaz de ser popular e de criar vínculos sem o mínimo de critério, entretanto, me permitindo o direito de autoanálise, sempre me esforcei para ser bem quisto - uma necessidade já abandonada por mim. Nessa curta jornada de experienciações sociais e interpessoais, galguei caminhos necessários para a ressignificação do "estar sozinho". Não adianta estar rodeado por pessoas, por corpos, por outros pensamentos, por outras personalidades e por uma rica gama de corações pulsantes se a solidão vive dentro de nós. Aqui eu gostaria que encarássemos a solidão para além do que conseguimos entender e compreender, assim como precisamos considerá-la como um obstáculo psicológico que precisa ser visto de maneira equânime em cada um de nós.

O que sei a respeito da solitude é que ela não é universal. Ela pode surgir em cada um de nós de jeitos diferentes. Pode ser uma resposta ao meio onde estamos inseridos, pode ser algo que quebrou dentro de nós, pode ser algo que ainda não podemos compreender, pode se caracterizar por algo que nos foi negado e pode significar que precisamos rever alguns de nossos passos. Eu não tive pressa para ressignificar o "estar" sozinho e também não encarei como uma urgência a possibilidade de vislumbrar a solitude como uma via sacra do aprendizado e das autodescobertas. O que sei hoje é que explorei tudo que a minha sensação de solidão me proporcionou. Talvez de forma inconsciente, fui conduzido a fazer, a sentir, a experimentar e a viver processos que foram pautados e norteados pela sensação de isolamento. Acho importante que eu traga para esse momento da nossa conversa uma consideração pontual sobre o meu envolvimento com esse sentimento. Fazer parte de algo inclui todas as representações que buscamos ao pleitear entrosamento e inclusão social. Estar representado em algum meio é uma ferramenta importante de empoderamento e, por consequência, de segurança. Ao decorrer desses anos de compartilhamento de percepções e sentimentos - por meio da escrita - cheguei a mencionar as dificuldades de me sentir representado, acolhido e aceito de forma geral. Não foi fácil vivenciar lugares e pessoas que não dialogavam com as minhas representações de mundo, de escrita, de fotografia, de leitura, de estilos e de aspectos raciais, de sexualidade e de gênero. Para elucidar de forma mais clara esse momento em que atrelamos a solidão aos marcadores representativos que me foram - de certa forma - negados, trago um trecho de uma entrevista de Abdias Nascimento¹ retirado do livro de título homônimo em que ele discorre brevemente sobre suas ponderações a respeito do exílio:

"[...] E eu falo claramente: eu nasci no exílio, porque num país onde eu não me vejo refletido nas instituições, no sistema de ensino, em nada, eu sou exilado. (...) Não tem nenhuma igualdade de oportunidade. Aqui não adianta o negro ter a capacidade que tiver, está sempre submetido a julgamento, a começar pela cor de sua pele, pela sua origem africana. Isso toda minha vida me acompanhou. Eu realmente sempre me senti um exilado..."²

Abdias nos apresenta uma visão de solitude baseada em todas as aplicações que o racismo lhe impôs enquanto ser humano. É importante analisarmos que quando ele diz que sempre se sentiu exilado, a palavra "exílio" torna-se sinônimo de solidão. Não se ver representado e se sentir excluído de suas potencialidades são fatores que me fazem aproximar do que Nascimento descreve nesse trecho. Parte daquela rejeição e exclusão que descrevo na primeira parte desse diálogo são claramente atribuídos a marcadores que não podem ser desconsiderados. Obviamente que Abdias descreve essa percepção inserido em contextos que não são os mesmos em que vivo, mas, falando com a maior propriedade que me cabe, essa descrição é atemporal e vem ao encontro das percepções que coletei ao decorrer do meu curto trajeto de vida. Negar oportunidade de diálogo, negar oportunidade de aprendizado, negar a chance de construção social, negar a representatividade e negar, de maneira especifica, fatores que validem a humanidade do outro são ferramentas do racismo e da LGBTfobia que também me enfiaram nas entranhas da solidão. Me sentir exilado, pelo menos durante muito tempo, me causou traumas e dores que não sou capaz de reviver, porém, como um jovem aprendiz da vida, fui capaz de rastrear e mapear possibilidades de respostas e de reação diante das investidas de diminuição da minha existência.

A solidão como um sentimento válido e relevante para nosso entendimento de mundo e ferramenta de viabilização de autoconhecimento precisa - e deve - ser analisada pela junção de inúmeros elementos. Não podemos estabelecer apenas um parâmetro afetivo e/ou uma visão simplista de "foi fruto de uma decepção" para pautarmos filosofias do tipo "faça seu percurso pela solidão e aprenda a viver bem dependendo apenas de você mesmo". Posso garantir que se ver sozinho e sentir-se sozinho possuem discrepâncias relevantes e que as percepções de solidão variam da "dor" ao "contentamento" com abismos de divergências causais. O fato é: você não precisa se sentir sozinho se não quiser estar sozinho. O Instagram é regado por mentiras e por "ferramentas" que tentam invalidar nossas idiossincrasias sem a menor discrição. Solidão é um recurso, pode ser um problema, pode significar plenitude, pode significar autoconhecimento, pode estar atrelada ao autoconhecimento, pode ser fruto de uma decepção, pode ser um fator psicossocial, pode ser coletiva ou individual e precisa ser vista numa vasta gama de possibilidades. Para tanto, se torna importante que tomemos como verdade que ainda iremos nos deparar com a solidão caracterizada em inúmeras formas podendo ser causada por diversos fatores, então nos resta legitimar nossa condição de humanidade para viver esses processos.

Talvez o que se esteja esperando de mim nessa condução para a finalização do nosso diálogo, seja a recomendação de terapia, uma visita ao psicólogo, uma consulta com o psiquiatra e que eu relacione as minhas experiências a todas essas ferramentas. Bem, deixarei aqui um breve panorama de como lidei com tudo que me doeu enquanto uma pessoa solitária. Tive inúmeros problemas psicológicos e precisei de terapia. Precisei de remédios. Precisei analisar. Porém, também precisei encher a cara, gritar, fumar e experimentar inúmeras coisas para tentar me fazer inteiro e fugir do sentimento de solidão. Depois que compreendi que não existe uma fórmula universal para curar, assimilar e aceitar determinadas condições, percorri meu processo de cura basicamente sozinho. Talvez eu não recomende meu exemplo de reconciliação com a solitude e muito menos deixe aqui essa descrição como uma possibilidade para você. Eu vivi os meus processos - e eles correspondem apenas a mim. Eu termino com uma frase super verdadeira - pelo meu ponto de vista: diante de alguns aspectos de vida, a terapia não é tão relevante.

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SEGUNDA E ÚLTIMA PARTE

leia o primeiro texto dessa conversa

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¹ Abdias Nascimento foi um intelectual, ativista, militante, ator, poeta, artista plástico e personalidade política brasileira. Foi criador do Teatro Experimental do Negro (TEN), produziu inúmeras obras que difundiram o multifacetado pensamento pan-africanista e, como parlamentar, foi responsável pela fomentação de políticas que visaram a diminuição das desigualdades raciais e de gênero.

² Entrevista retirada do livro "Abdias Nascimento" da coletânea "Retratos do Brasil Negro" com 1° reimpressão em 2020 pelo Selo Negro Edições. Disponível nas páginas 95 e 96.

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