ALMA LIVRE - PERCEPÇÕES

By Tiago Ferreira - 14.3.18

Em tempos de busca pela liberdade, pela autenticidade, pela expressão e reconhecimento retomamos o diálogo iniciado pelo trabalho "Alma Livre" - idealizado e realizado por Jade Tresca e publicado pelo Limoções em 29/5/16 - com uma visão atual e vestindo palavras que nasceram posteriormente ao nascimento desse projeto fotográfico. "Alma Livre" foi justificado, na época pela a autora, com a música "O Patrão Nosso de Cada Dia" do grupo musical "Secos e Molhados". Essa mesma canção ainda regerá as perspectivas apresentadas por Tresca, mas o olhar volta-se para o presente, ou seja, para aquilo que foi percebido, vivido e sentido depois de quase dois anos. Acompanhe:


Tiago Lima

No ano em que o Limoções completa três anos de criação, sinto que todas as duvidas e medos que me regiam na época de sua criação já se dissolveram. Parece que tudo fora esclarecido, tanto em textos ou em fotos, e tenho a impressão de que tenho o direito de me orgulhar de tudo que - por intermédio dessa plataforma - foi criado, sonhado, escrito, vivido, sentido e visto. Mas algo ainda não foi de um todo esclarecido. Sinto que o meu sentido de liberdade se firmará hoje com a construção dessa dialógica entorno desse trabalho. Se a minha liberdade me conduziu até a criação, qual o meu sentido de estar livre e qual é a relação com a criação e convicção das fotografias desse projeto?

“O patrão nosso de cada dia” - Estar livre sempre foi uma questão de rebeldia para mim. Nasci em um berço onde um molde me esperava, um molde que traria para a minha vida o sentido que esperavam que ela tivesse. Sempre que algo diferente do molde aparecia em mim, todos estavam preparados para podar a minha predisposição ao corrompimento dos parâmetros. O objetivo era sempre o mesmo: me fazer permanecer igual aos demais. A coisa era tão radical que fui privado da literatura, da música, do teatro, do cinema e de qualquer coisa que "ameaçasse" a forma que estavam tentando me atribuir. Os recursos utilizados para me induzirem a permanecer naquilo que chamo de "o caminho da perfeição" eram tão intimidadores que demorei a ter coragem para questionar a veracidade e razão daquelas regras. Então, sem poder me sentir e/ou me viver, eu estava entregue - na verdade à mercê - dos meus patrões. Eu fazia exatamente o que me era ordenado e no final do dia estava livre de um esporro ou de uma surra. Se eu fizesse exatamente o que os meus senhores mandassem, eu estaria livre de ser vitima do mal que me esperava no mundo e - no final do dia - eu poderia sentar à mesa e jantar em família portando a dignidade e pureza. Não era tão gratificante ter que realizar as projeções dos patrões, mas eu precisava ter a certeza de que eu teria o olhar de cada um deles dia após dia.


“Eu quero o amor, Da flor de cactus, Ela não quis” - Minha formação, como ser humano, só foi focada na construção do caráter do tradicional "homem de bem". Fui formado para ser aquele que tem a obrigação de ser racional. Fui orientado a acreditar e a cumprir os ensinamentos religiosos, porque todo "homem de bem" tem uma fé declarada que faz parte do senso comum. Questionar não poderia ser uma opção, pois faz parte da formação de um homem de caráter ver, ouvir e sentir sem se desviar do propósito que lhe foi estabelecido. Como ser humano, a importância implícita na minha vivencia na sociedade era poder honrar um nome de família, um nome de um deus, um nome de uma instituição, uma vontade alheia e permanecer distante das minhas vontades pessoais, aquelas que ficam guardadas no intimo de qualquer um.

“Eu solto o ar, No fim do dia, Perdi a vida” - Talvez eu tenha perdido a chance de ter sentido, dito, questionado, vivido, aprontado e ter sido gente enquanto estive preso nas vontades dos meus patrões, mas ninguém tirou de mim a condição que nasceu em mim: evoluir. Não, não perdi a vida. Perdi trechos de uma vida que eu projetei em mim, que queria em mim. Eu vi e ouvi pessoas vivendo fora dos mesmos parâmetros que eu. Sei de gente que não esteve preso todos os dias na hipocrisia, sei de gente que teve a chance de se moldar desde sempre, conheço pessoas que cresceram na diversidade cultural e sei que todos trazem a mesma condição que eu: seguir. Não perdi a vida, mas perdi a projeção que existiu no tempo em que meu cárcere era soberano.


ALMA LIVRE ALMA LIVRE

"Alma Livre" não foi encomendado por mim para sinalizar o rompimento com a prisão na qual eu vivia. Esse trabalho nasceu a partir de uma perspectiva de mágoa e cansaço que estão intrinsecamente ligados a liberdade, pelo menos ligados a minha liberdade.

A abolição da alienação na qual eu estava submetido aconteceu quando eu conheci a arte. Foi por intermédio do meu cansaço e trazendo na linha de frente da minha vida os meus rancores e frustrações que optei por transformar as minhas dores em palavras. No momento em que não me vi mais nas projeções alheias e permiti sentir as consequências da revolução que minha rebeldia me traria, foi que consegui quebrar as correntes que impediam o meu crescimento. O que optei por ser não foi influenciado por qualquer pessoa. O que optei dizer enquanto escrevia não foi influenciado por nenhum autor. Quando me vi solto, me vi só. Eu sabia que enquanto estivesse dentro das regras eu poderia contar com a presença dos meus senhores e dos meus amigos em qualquer situação da minha vida. Eu não era de um todo importante naquele meio, mas eu fazia parte do funcionamento daquela máquina. Eu era um fruto da hipocrisia.

"Alma Livre" apresenta características que me norteiam enquanto a um "ser livre". Eu sou uma mistura de vida e morte. Uma mistura de cansaço e agito. Sou uma mistura de medo e coragem. Sou tudo que motiva e desmotiva qualquer ser humano. Minha vida sempre caminha mediante a linha tênue das minhas insatisfações e meus contentamentos.

Hoje o meu sentido de liberdade é ter coragem de romper com as projeções que lançam sobre mim e ter mais coragem ainda de continuar a caminhar mesmo estando só.  Liberdade é ter conseguido compreender que ninguém - que não seja eu - conseguirá impedir o meu crescimento, o meu evoluir. Liberdade foi o que conheci quando descobri que consigo fazer arte. Liberdade é estar no meio da natureza. É enfrentar a repressão que ainda sofro por ser o que sou: ser humano.

Jade Tresca

ALMA LIVRE

O "Alma Livre" foi desenvolvido no início de 2016. Já faz dois anos, e, como se pode imaginar, muitas coisas mudaram em nossas vidas. O trabalho fotográfico retrata o espírito livre que vive em cada um de nós, castrado e limitado diariamente pelos “patrões nosso de cada dia”. Tal trabalho não tem pretensão de dar as respostas ao leitor sobre quais são nossos patrões e o que é “ser livre”, muitos teóricos já o fazem. O papel da arte é tocar o sentimento e os sentidos para que assim o leitor tire suas próprias conclusões, e possa se identificar através da obra e do artista.

Tiago e eu passamos por muitas situações juntos. Nossos espíritos irreverentes e livres jamais poderiam ficar presos aos moldes de uma verdade absoluta que despreza toda a diversidade de ser humano. Esse ensaio simbolizou uma busca constante da liberdade, “liberdade de espírito”, liberdade de pensar, liberdade para se expressar, liberdade de viver, porém com todas as restrições de jovens que lutam diariamente para sobreviver. Contudo, dois anos depois me surgiu um questionamento: minha alma continua livre? Aquela menina queimada do sol e aquele menino vestido ao estilo 70’s aprenderam a serem livres?

Em dois anos arrumei um emprego, amadureci a minha forma de amar, rompi com certas idealizações, voltei aos estudos da Psicologia, ganhei mais responsabilidades, enxaquecas decorrentes do estresse, marcas de expressão, larguei e voltei com o cigarro mil vezes, entre muitos outros. Não sou livre para fazer o que eu quero no meu dia-a-dia. Trabalho das 9hs as 18hs. A menina que aquarelava e escrevia poemas, não o faz há três anos. Não lê e não escreve mais com a frequência que o fazia - apenas relatórios de observação, nada muito poético nem sensível -.

Porém, tanto essa menina, quanto esse menino, são livres para imaginar, planejar e lutar para um dia em que possam seguir os seus sonhos. Fazer algo que os deixem felizes. Viver e não só sobreviver. Algo que os façam acordar sem despertador. No final, acho que ser livre é poder se reinventar. Ser livre talvez seja não se deixar levar pela cegueira e alienação da sociedade, pela desigualdade, pela meritocracia. Seguimos lutando pela liberdade.

"Somos indivíduos livres e nossa liberdade nos condena a tomarmos decisões durante toda a nossa vida. Não existem valores ou regras eternas, a partir das quais podemos nos guiar. E isto torna mais importantes nossas decisões, nossas escolhas." - Jean Paul Sartre.


Clique aqui e confira o álbum completo desse trabalho no Flickr.

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