E, considerando o presente, recuo para me olhar. Não vejo sorte, não vejo azar. Não vejo alegria, não vejo pesar. Vejo palavras escritas, outras mil não ditas. Vejo contentamento em ser o que se é, conflitando com aquilo que ainda é projetado pelo o outro. Somos a divergência de todas as expectativas depositadas. Não considerando o lugar que outrem tentou nos colocar, surpreendemos, dizemos ao mundo nosso significado. Silêncio. Me vejo quieto, em pé, concentrado. As palavras escritas dizem sobre o caminho percorrido, dão méritos aos passos dados, ponderam sobre os aprendizados. Quem fala é o silêncio. Trazendo sabedoria e um toque de contentamento, o silêncio diz sobre aquilo que já foi escrito, foi narrado, foi revisitado e revisto.
"[...] Talvez de nada sirva que eu analise uma por uma de suas palavras agora. O que poderia dizer acerca de seu pendor para a dúvida ou de sua incapacidade de harmonizar a vida externa e a interna, ou tudo aquilo que o oprime ainda, seria sempre a repetição do que já disse: desejo que encontre bastante paciência em si para suportar e bastante simplicidade para crer; que confie cada vez mais no que é difícil, entre outras coisas na sua solidão. No restante, deixe a vida acontecer. Acredite-me: a vida tem razão em todos os casos (RILKE, 1904)."
Nas cenas que compõem o cotidiano, tendemos a descontinuar as nossas próprias sensibilidades, tratando mal as necessidades básicas que sussurram quase que inaudível aos nossos ouvidos. A vida tende a dar sinais de sobrecarga. A gente sente o olho tremer, sente dificuldade para pegar no sono, sente até dor de estômago. Aquilo que nos silencia também mostra sua potencialidade. Tratativas diárias, ilusões de um cotidiano mais saudável. Achamos que na manhã seguinte tudo estará esclarecido. A gente vai sendo guiado, sem saber ao certo se o caminho é seguro. Me vejo ali parado, tomando fôlego, pensando no título do próximo texto. Próximo...
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Ontem eu deixei o tempo escorrer pelas minhas mãos. Tirei a pilha do relógio. Sentei na varanda. Eu tinha o mesmo cheiro de cigarro, eu era o mesmo de antes, eu ainda me ouvia caminhar pela estrada de pedras. Eu sabia que poderia me ver em todas as direções que olhasse, pois eu me tornei um único inteiro, eu sou único. Ainda que pudesse soar como uma mentira, o dia nasceria sem o desespero para desfazer aqueles nós que alguma versão de mim havia deixado em algum dos meus passados. Eu estive em todos os lugares que descrevo nas centenas de textos que escrevi, mas não me recordo se já estive no local da contemplação.
Admiro o que se formou de mim e aplaudo aquilo que escolho chamar de eu. Eu voltarei a caminhar, desencontrarei as versões de mim, terei espaço para abrigar aqueles que ainda seguem buscando seus pedaços. Não posso dizer que me encontrei, mas posso afirmar que estou reunido com aquilo que já conhecia. Estou em casa com a junção de todas as tentativas de mim. E, pelo menos por hoje, abrigo a obra imperfeita que evitei durante anos de existência.
O sol nasceu e já ilumina a janela. O quintal está repleto de vida, está cheio de plantas, está cheio de orquídeas, tem cachorros, tem pássaros, tem um pedaço do mundo sendo cultivado naquele quintal. Não quero parecer exigente, mas essa beleza já não é mais capaz de reverberar minhas expectativas sobre as possibilidades do amanhã. Já conheço os efeitos do amanhã sobre aquele quintal, assim como já sei como as plantas se comportarão em cada estação. Minha admiração - ou meu desprezo - sobre as características contidas naquele quintal não são relevantes. A vida vai seguir com suas características próprias e conseguirá ignorar o que eu tenho a dizer sobre ela. A vida irá se mancomunar com o tempo e os dois decorrerão intimamente, serão como um só.
Suponhamos que eu estivesse cansado e a exaustão fosse chamada por um nome bonito, mas temido por uns e ignorado por outros. Suponhamos que eu estivesse deprimido e minha presença naquele quintal destoasse da proposta entregue a cada manhã pela vida, eu não seria capaz de desestabilizar aquele ecossistema, pois a seleção natural daria um jeito de exterminar a minha presença. Se o malogro que eu carrego fosse materializado e quantificado, evidenciando as minhas tratativas com as impossibilidades que a vida ignorou, naturalmente eu seria exterminado por não ser capaz de emanar esperança a cada amanhecer. Se naquele quintal eu fosse simplesmente marginalizado, fosse colocado propositalmente às margens para não contaminar aquele cenário, será que aos poucos minha imagem acabaria desaparecendo e as memórias sobre mim caíram ao chão como folhas secas?
Não tenho grandes planos para efetivar minha presença nos locais que acredito merecer estar. Sei que mereço estar onde estou - e não falo de merecer aquilo que parece acompanhar a beleza. Já aceitei que a beleza evitou minha existência, então vesti com satisfação a fantasia da monstruosidade, assim como me coube o papel de erva daninha desse jardim.
03/janeiro/2023
Reatividade é a palavra que sempre evoco para conceituar os lugares que ocupo enquanto ser humano. Trabalho de anos em análise própria, em autodescobertas, em desafios solucionados e em lições de casa realizadas depois de cada nova lição ensinada. Reatividade também é a palavra que uso para resguardar o meu direito de resposta - e o direito de responder é simplesmente o direito de reagir. Reagir verbalmente, reagir fisicamente, reagir momentaneamente ou reagir a longo prazo? Questionamentos que surgem após a reação, pois jamais fui o cérebro computadorizado com uma programação definida para selecionar instantaneamente as reações que entrego/uei ao meio. Reatividade é a palavra que escolho para conceituar a humanidade que reside em mim e potencialmente reside em todes que estão ao meu redor. Ser humanidade e reatividade são duas coisas indissociáveis.
Talvez o caminho para o reagir seja o aprender, mas isso também me soa como um esforço unilateral de tentativas constantes de sobreviver em locais que são naturalmente reativos ao que sou. Até agora não ponderamos sobre a reatividade em caráter positivo ou negativo. Não consigo usar os dois polos mencionados anteriormente por acreditar que reagir é o sintoma de vida que carrego comigo diariamente. Nesse trecho do texto preciso conceituar novamente quem sou: periférico, pobre, preto, assexual e um profissional da saúde. Tenho que descrever os marcadores que tangem a minha existência para ceifar as possibilidades tendenciosas de manipularem minhas palavras e transformarem a reatividade em uma arma de batalha sem critérios, sem nuances, sem realmente pertencer ao que de fato importa: a humanidade.
Reagir pode ou não ser uma escolha, mas é necessária muita força para escolher. Força é outro conceito bem subjetivo para mencionarmos, pois cada um vive a força que conhece, manipula a força que aprendeu, sobrevive da força que se alimenta diariamente e sabe onde colocar a força para escolher o que fazer a partir de determinado local. A gente precisa entender sobre nós e delimitar aquilo que tomaremos como valores. Precisamos ter repertório para entender que a raiva também está devidamente validada como uma emoção. Respeitar a humanidade para que a nossa a raiva se transforme, crie vida e se dissolva.
SINOPSE: Em Olhos d’água Conceição Evaristo ajusta o foco de seu interesse na população afro-brasileira abordando, sem meias palavras, a pobreza e a violência urbana que a acometem. Sem sentimentalismos, mas sempre incorporando a tessitura poética à ficção, seus contos apresentam uma significativa galeria de mulheres: Ana Davenga, a mendiga Duzu-Querença, Natalina, Luamanda, Cida, a menina Zaíta. Ou serão todas a mesma mulher, captada e recriada no caleidoscópio da literatura em variados instantâneos da vida? Elas diferem em idade e em conjunturas de experiências, mas compartilham da mesma vida de ferro, equilibrando-se na “frágil vara” que, lemos no conto “O Cooper de Cida”, é a “corda bamba do tempo”. Em Olhos d’água estão presentes mães, muitas mães. E também filhas, avós, amantes, homens e mulheres – todos evocados em seus vínculos e dilemas sociais, sexuais, existenciais, numa pluralidade e vulnerabilidade que constituem a humana condição. Sem quaisquer idealizações, são aqui recriadas com firmeza e talento as duras condições enfrentadas pela comunidade afro-brasileira.
"A morte brinca com balas nos dedos gatilhos dos meninos. Dorvi se lembrou do combinado, o juramento feito em voz uníssona, gritado sob o pipocar dos tiros:— A gente combinamos de não morrer! Limpou os olhos. Lágrimas apontavam diversos sentimentos. A fumaça que subia do monturo de lixo, ao lado, justificava qualquer gota ou rio-mar que surgisse e rolasse pela face abaixo. Era a fumaça, desculpou-se consigo mesmo e cantarolou mordiscando a dor, a canção do Seixas: “Quem não tem colírio usa óculos escuros.”A morte incendeia a vida, como se essa estopa fosse. Molambos erigem fumaça no ar. Na lixeira, corpos são incinerados. A vida é capim, mato, lixo, é pele e cabelo. É e não é. Na televisão deu:— Mataram a mulher, puseram o corpo na lixeira e atearam fogo!Dorvi respirou e aspirou fundo. Mas que merda, pó contaminado, até parece talco para pôr na bunda de neném. Pois é, meu filho nasceu. Um pingo de gente. Quando Bica me mostrou, nem tive coragem de olhar direito. Pequeno, tão pequeno! Deveria ter ficado na barriga da mulher, ou melhor, incubado como semente dentro do meu caralho. Quis cutucar o putinho com a ponta de minha escopeta. Bica se afastou como se o filho fosse só dela. Não sei para que o medo."
Antes de chegar na rede, de estar amparado por um grupo de pessoas, de ter consultado com uma série de profissionais e de ter tentado diversas medidas terapêuticas, eu trilhei caminhos solitários para conseguir compreender as consequências daquilo que ainda guardo dentro de mim. Mesmo que já tenha decorrido um tempo considerável em rede, ainda mapeio o que é meu, o que foi deixado em mim e o que preciso consertar para seguir residindo na casa que preciso ter para me sentir seguro. É uma linha tênue entre insistir em mim e cansar de tentar delimitar meu próprio espaço. Mas hoje sei que não existe remédio para a memória.
A consciência que carrego agora me faz perceber o que acontece ao meu entorno, mas a minha memória é quem empodera as minhas reações, é quem delimita as minhas vontades, é aquilo que conduz cada passo que dou. Nunca estive tão empoderado de mim, em completa sintonia com a minha própria história, conectado de maneira íntima com o mais profundo dos meus traumas, ligado de maneira entrelaçada com meus medos e anseios, preso na trama das minhas rejeições e projetado de maneira exclusiva a tudo aquilo que já conheço. Estou, de certa forma, exposto. Como um peixe, fui entrelaçado na rede, fui capturado, fui colocado em quarentena num aquário. Estou em quarentena com as minhas próprias evitações e não existe remédio para curar uma série de lembranças que foram construídas em anos de existência.
Se minha memória empodera, não quero me desfazer daquilo que me coloca em projeção. De contrapartida, quando fecho meus olhos não enxergo aquilo que ainda está por vir. Condicionado a manejar o familiar, a conduzir aquilo que já conheço, condicionado a manipular o que já passou, não me vejo expectando o que tem por vir, o que me espera na consciência daquilo que eu deveria fortalecer como potencialidade. É um limite entre me desfazer daquilo que romantizei como meu e fortalecer aquilo de que preciso para seguir em frente. Nada jamais se comparará com o que fui ontem, jamais força alguma superará o que fui anteontem e não creio que amanhã eu esteja em pé para sustentar o que hoje é apontado como um amontoado de memórias. Estou na consciência de mim, sustentando as versões de mim que escreveram histórias com inúmeros desfechos, mas confesso que não sei qual versão de mim sou agora.
Mesmo que eu escute incessantemente que preciso parar de esperar respeito pelas memórias que carrego, que preciso transcender aos males que minhas próprias personagens me causam na atualidade, que preciso ressignificar meu sentido de casa, que preciso gerenciar meus próprios micro-conflitos, que preciso me desfazer daquilo que acreditam não me pertencer, não existe remédio para a memória. Como ressignificar aquilo que ainda vive nítido na minha memória quando fecho os olhos para pensar sobre o amanhã? Talvez eu seja feito exclusivamente de ontem, tenha que viver no anteontem. Talvez eu tenha entendido de maneira equivocada sobre o sentido de tempo e espaço, tendo escolhido permanecer no passado. A certeza que eu apresento é clara: ninguém criou um remédio para a memória. Trancafiado no aquário, já comecei a ver a quarentena como a minha nova casa, pois me cabe o limite geográfico, me cabe os parâmetros da água, me cabe os ornamentos, me cabe a solidão, me cabe a artificialidade do existir. Não me vejo mais fora do aquário, pois resido exclusivamente no limite, sendo seguro ter meus passos delimitados.
Não costumo falar sobre as nuances de força que carrego diariamente para vencer todos os percalços que recaem sobre meu cotidiano, mas já usei esse local de escrita para dissertar a respeito da resistência. Na maior parte do tempo estamos resistindo a algo, a alguém ou a alguma situação. Ponderamos sobre nossos limites para delimitarmos nossa reatividade dentro do espaço que consideramos aceitável. Saber se ponderar é uma tarefa bastante difícil, assim como saber o momento certo de não permitir sucumbir aquilo que deve ser dito, mostrado, evidenciado e aos nossos próprios limites que podem ser ultrapassados. Resistência também é uma daquelas palavras que possuem ambivalência em sua aplicação, pois pode significar sobre os dois pontos que destrinchamos nesse parágrafo: resistir aos percalços/resistir ao que confronta quem somos. No fim, acredito eu, estamos sempre falando de força.
Para conseguir gerenciar quem sou - e onde estou - adotei algumas condutas de sobrevivência. Parte da minha atual condição de existência determina que preciso ser respeitado, assim como preciso respeitar. Não estou falando sobre habilidades que dizem respeito a tolerância, pois não preciso ser tolerado e não encaro a existência de outras pessoas como algo passível de tolerância. Existo dentro da minha história e fortaleço meu caminhar reivindicando meus espaços, minha voz, minhas críticas, minha visão e meus gostos. Todos os dias eu preciso reivindicar algo diferente, pois corro o risco de ser sistematicamente apagado ou silenciado. Minha visão de mundo passou por um construto unilateral de sobrevivência, atribuindo ao que conheço do viver uma visão de algo potencialmente dolorido, cansativo e exaustivo. De fato, minha existência não está regada por satisfações, por alegrias, por conquistas e por uma série de coisas boas que tenho até dificuldade de elencar. Ainda aprendo sobre o respeito que tenho por mim, assim como aprendo diariamente sobre o momento em que esse respeito é questionado.
Sobreviver é dizer sobre o viver por meio de uma série questões sem respostas, mas a vida cotidiana não é tão existencialista a esse ponto. Estamos o tempo todo resistindo ao meio, reafirmando nossos valores e crenças, e tentando ratificar aquilo que tomamos como verdade. A minha verdade é que a vida é cheia de percalços e eu preciso arranjar artifícios para permanecer sóbrio, lúcido e flertando com a coerência. Falo o que penso a quem interessa ouvir, assim como escuto aqueles que têm o que falar. Diante das circunstâncias, escolho articular a reciprocidade, mas também posso articular a não reação, posso articular o silêncio, posso articular o abandono. Só é capaz de corresponder às expectativas depositadas diante da existência quem preenche locais em que se vê inseguro, pois a insegurança é produto daquilo que nos faz mais humanos. Entretanto, falando da insegurança como sentimento engendrado pelos percalços da vida, só consegue transpassar esse sentimento de fragilidade quem se viu diante da necessidade de resistir.