FANTASIA E PERSONAGEM

By Tiago Ferreira - 19.11.23

Aquilo que nos aprisiona também pode nos libertar. É curioso pensar que estamos propensos a recuperar algumas lembranças do caminhar para fomentar movimentos de continuidade dos passos que damos, assim como também vemos no presente a potência necessária para evitar aquilo que já passou. Hoje temos algumas respostas com algumas perguntas ainda vívidas, mas não tenho certeza que em algum momento estaremos satisfeitos com o pouco que cultivamos diante do tempo. Meandros e ressalvas parecem mais características de sobrevivência, assim como o silêncio se tornou refúgio para a estabilização de ressentimentos.

O ressentir tem potencial de crescer como uma árvore, florir, dar frutos e alimentar outros ressentimentos. E se ressentir foi ferramenta de absorção de forças e criação de coração, talvez os ressentimentos devam estar na memória, devem ser trazidos para as lembranças e devam ser usados como meios de articular aquilo que pode se apresentar como cansaço. E eu sei que cansa ter que ficar reavaliando dia após dia, mês após mês e ano após ano. Os tempos de cansaço são como deveriam ser: ingratos.

Agora, quando temos a chance de mencionar o cansaço, temos que aceitá-lo como um monstro ou como uma consequência de dias difíceis? O que torna um monstro um monstro? Talvez a crença que depositamos nele - o medo é uma crença que alimenta tantas monstruosidades. As decisões erradas que deveriam ser deixadas no passado também têm potencial de alimentar monstruosidades. Os arrependimentos também criam monstruosidades. E se eu pudesse te dizer que o cansaço nos torna monstruosos em capítulos específicos de nossas histórias, você acreditaria em mim? É como uma festa a fantasia, escolhemos uma por ano e performamos de acordo com as características da personagem. Se vestir de uma personagem é algo divertido, mas ser transformado numa personagem pode não ser.

Eu diria que tudo se apresenta diante do processo que existe para que cada um de nós exista plenamente, mas disso você já sabe. Seja cansado ou encorajado a ser você ou a sustentar a personagem, quero reafirmar que não se faz necessária a tentativa de justificar, de se desculpar, de pedir permissão, de ter que se rasgar dos papéis que podem ser avaliados como seus, como nossos. Eu já conheci tantos monstros, já fui monstros e já perdoei as minhas personagens. No final do dia, daquele dia de cansaço, não existe santidade que diga o contrário do que temos o direito de sentir.


Fazer guerra ou forjar a paz? Gritar bem alto ou fingir que o silêncio faz bem? Pensar para fazer ou deixar que o impulso guie os passos? Manter o ritmo ou se entregar ao descompasso? Mostrar a face ou se esconder atrás das inúmeras máscaras? Ser despojado ou passar despercebido? Mostrar que sabe ou se fazer de desentendido? Deixar de questionar ou inundar o mundo de questionamentos? Temos que escolher?


Talvez todo passo que foi dado até aqui tenha sido cobrado. Talvez cada luta vivida já tenha sido recompensada, mas e se não conseguirmos perceber o óbvio ou se nos perdemos em meio ao que não é sensível aos olhos, será que fica impossível seguir em direção ao que não foi programado? Aparentemente não existe problema em sentir que estamos constantemente em queda livre. Não parece um problema que nos comportemos como crianças que estão aprendendo a andar. Parece que viver é uma constante de tombos, de assombros, de medos e de ressalvas. Mesmo que todos os porquês pareçam não possuir respostas, não tem parecido errado não saber o que falar, não saber se aquietar, não parar de chorar, de sentir medo e de ter toda espécie de receio. Se a vida pode ser resumida a uma estrada cheia de obstáculos para quem está deixando de engatinhar, está tudo bem em sentir cada sensação provocada pela tentativa.


Se toda palavra dita até aqui foi justamente absorvida por toda orelha que as interceptou, não tem parecido errado seguir falando bem alto as sensações que a pressão tem causado para quem ainda tem medo de alçar voo. Cada coisa que foi vivenciada teve a chance de ser memoriza, cada caminho trilhado teve a chance de ser memorizado e cada lágrima derrubada teve a chance de umidificar o ar seco, de fazer florir o botão de flor que você cultivou. Está tudo bem em se sentir afogado no silêncio das palavras que não conseguimos dizer, pois o que ficou entalado na garganta será reabsorvido pela experiencia, pela tentativa, pela persistência. Se o silêncio é uma opção viável, então que seja o mesmo a nos encher de coragem. Escreve e manda, escreve e apaga, fala sozinho, fala na cara e deixe que o vento leve as preposições para os seus devidos lugares. Onde a fala foi devidamente valorizada, não tem asa podada que impeça seu locutor de voar.


E não se veja na obrigação de santidade, pois ninguém vai te canonizar. Sua vida será vilania para quem não vê você como um todo, assim como a luta de muitos não possui valor para quem não os viu cultivar o amor, celebrar o amanhecer e os ver diante do espelho. Está tudo bem em conviver com perguntas sem respostas, assim como não tem problema em fechar as portas para quem você escolheu deixar de fora da sua história. A pressão, a paz, o medo, o terror, a frieza, a ternura, a guerra, a persistência são possibilidades, então não se arrependa de escolher. Mesmo que você escolha não fazer qualquer escolha, seu mundo existe por você. (CARTA PARA OS DIAS DE CANSAÇO - LIMOÇÕES | 26/09/2019)

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