
Voltei alguns anos no tempo para buscar um garoto tímido, gordo, de cabeça raspada, quase sempre solitário e preso em crenças não suas. Encontrei o garoto, escutei sua voz e até ouvi seus pensamentos. Medo, rancor, insegurança e pavor de ser, como viveu assim aquela jovem pessoa? Nos amedrontarmos diante de coisas desconhecidas é normal, mas temer ser e estar é praticamente uma crueldade. Pertencimento, reconhecimento, espaço. Era como se eu estive mais uma vez naquela pele e cultivando atos de bravuras para ser o melhor, assim como precisava investir com força em maneiras de me manter seguro. Não poderia ser bonito, não poderia ser popular, não poderia se encaixar naqueles padrões. O que restou foi performar como um bom aluno. Estamos na escola. O ambiente é fácil de reconhecer. Tem boas notas, tem solidão. Eu estou na pele da minha criança e nós dois estamos doentes.
Depois que encontrei a criança que deixei desemparada, tive que voltar para o adulto que também se desamparou. Um caminho tortuoso faz a estrada daqueles que desviaram do caminho da normalidade, mesmo que não tivesse sido propositalmente. A criança desprotegida estava cercada por expectativas e meandros de outrem. O adulto hoje frustrou a expectativa de outrem e ainda está dentro do circulo de meandros que regam sua existência. A criança, assim como o adulto, resistiu. Resistência para falar sobre vivência, para dissertar sobre uma infância de confusão e memórias doloridas. Minha criança e eu poderíamos costurar no tempo aqueles traumas que colecionamos. Mesmo que tenha sido um caminhar exaustivo, aguentamos. Há méritos para quem aguentou, mas quando rompemos com o passado para deixar a criança saudável e o adulto minimamente seguro?
Talvez a resposta esteja no perdão que eu ainda não tive a chance de pedir para a criança que hoje consigo claramente observar. Nós tínhamos objetivos em comum, nós compartilhamos o mesmo corpo, nós estamos no mesmo passado, nós simbolizamos aquilo que venceu. Quero pedir perdão e dar afago. Nós fizemos nosso melhor - não existe possibilidades de questionar tal verdade. Passamos pelo mesmo inferno e queimamos juntos, mas não quero mais ter que encontrar minha criança no mesmo horror que o adulto cultiva hoje. Nós temos a mesma força, somos praticamente invencíveis, mas cada um precisa permanecer no seu tempo.
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