MINHA CRIANÇA

By Tiago Ferreira - 13.11.23


Hoje reparo bem que defendi o preto e branco como a proposta da minha vida, a única maneira de ver, de sentir, de agir e de responder ao mundo. Quando criança, eu vi sendo tirada de mim a chance de enxergar o mundo com suas cores e com todas as suas potencialidades. Há quase 1 ano tento diariamente colorir o preto e branco, tento fazer aquarela, dar vida ao que me disseram que não poderia me pertencer. É louco pensar que você pode seguir uma vida na limitação que criaram para ceifar sua criatividade, sua originalidade, sua personalidade. É, assumo que estou na presença da minha criança.

Voltei alguns anos no tempo para buscar um garoto tímido, gordo, de cabeça raspada, quase sempre solitário e preso em crenças não suas. Encontrei o garoto, escutei sua voz e até ouvi seus pensamentos. Medo, rancor, insegurança e pavor de ser, como viveu assim aquela jovem pessoa? Nos amedrontarmos diante de coisas desconhecidas é normal, mas temer ser e estar é praticamente uma crueldade. Pertencimento, reconhecimento, espaço. Era como se eu estive mais uma vez naquela pele e cultivando atos de bravuras para ser o melhor, assim como precisava investir com força em maneiras de me manter seguro. Não poderia ser bonito, não poderia ser popular, não poderia se encaixar naqueles padrões. O que restou foi performar como um bom aluno. Estamos na escola. O ambiente é fácil de reconhecer. Tem boas notas, tem solidão. Eu estou na pele da minha criança e nós dois estamos doentes.

Depois que encontrei a criança que deixei desemparada, tive que voltar para o adulto que também se desamparou. Um caminho tortuoso faz a estrada daqueles que desviaram do caminho da normalidade, mesmo que não tivesse sido propositalmente. A criança desprotegida estava cercada por expectativas e meandros de outrem. O adulto hoje frustrou a expectativa de outrem e ainda está dentro do circulo de meandros que regam sua existência. A criança, assim como o adulto, resistiu. Resistência para falar sobre vivência, para dissertar sobre uma infância de confusão e memórias doloridas. Minha criança e eu poderíamos costurar no tempo aqueles traumas que colecionamos. Mesmo que tenha sido um caminhar exaustivo, aguentamos. Há méritos para quem aguentou, mas quando rompemos com o passado para deixar a criança saudável e o adulto minimamente seguro?

Talvez a resposta esteja no perdão que eu ainda não tive a chance de pedir para a criança que hoje consigo claramente observar. Nós tínhamos objetivos em comum, nós compartilhamos o mesmo corpo, nós estamos no mesmo passado, nós simbolizamos aquilo que venceu. Quero pedir perdão e dar afago. Nós fizemos nosso melhor - não existe possibilidades de questionar tal verdade. Passamos pelo mesmo inferno e queimamos juntos, mas não quero mais ter que encontrar minha criança no mesmo horror que o adulto cultiva hoje. Nós temos a mesma força, somos praticamente invencíveis, mas cada um precisa permanecer no seu tempo.  

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