EU SOU PORQUE NÓS SOMOS

By Tiago Ferreira - 6.8.23

Hoje sabemos que a composição de uma pessoa passa por questões específicas dentro de uma palavra: biopsicossocial. Somos compostos com aspectos biológicos, sociais e psicológicos. Biopsicossocial é uma palavra do conceito "guarda-chuva" e serve de parâmetro para analisarmos nossa humanidade e a humanidade de outrem. Estamos falando de uma palavra com força política, referenciando os aspectos básicos da vida: espiritualidade, círculo social, contextos familiares, razões econômicas, características culturais e aspectos de saúde e/ou de acesso à saúde. É diante dessa dimensão, dessa visão multidimensional, que hoje me vejo e me pondero, sendo importante para que eu jamais retire de mim a humanidade que me cabe por direito. Agora que retomamos o conceito plural para nos tornarmos capazes de escrever sem determinados meandros, podemos visualizar os passos que damos entorno da vida de outrem, dos nossos locais dentro das relações que cultivamos e nossas autopercepções a respeito de nós e do outro. No final das contas, convoco para esse parágrafo uma indagação levantada por Luana Lima: deverei velar pelo outro?

Se somos formados por questões múltiplas - o que inclui, sem chance de exclusão, relações interpessoais -, tendo como parâmetro para esta formação as características exclusivas de cada indivíduo, assim como todas as fragilidades e potencialidades que o projetam no mundo, podemos começar respondendo a pergunta da autora com uma frase da filosofia Ubuntu: "Eu sou porque nós somos". Se levarmos em consideração o construto social e econômico que também atribuem uma variedade de características exclusivas a cada indivíduo que precisa ceder aos jogos do capitalismo, aos aspectos de normatividade em beleza, articulando luta diária para superar ou formular situações de violência racial e/ou de gênero, teremos mais uma resposta: estamos em rede, mesmo estando em subjetividades. Não considero a palavra "velar" apenas como o ato de assistir ao outro, mas atrelo seu sentido ao poder de estar em algum lugar pelo o outro. Nossas subjetividades, geralmente, demandam tempo e esforços próprios para que consigamos finalizar um dia com louvor, mas, de contrapartida, a filosofia Ubuntu também resgata a possibilidade do cuidado em rede, da articulação por identificação, do encontro dos pares para que seja possível estar.

"[...] É dar espaço para análise de outras categorias dentro do suicídio, como por exemplo, o mal estar gerado pela cultura (FREUD, 1996), em especial, como indicou Marx (2006), pelos múltiplos aspectos opressores das sociedades. Construções sociais criam formas de existências enquadradas, estatutos, de despertencimento que projetam vidas precarizadas e sem legitimidade. Forças sociais provedoras de violências são prementemente: racismo, machismo, meritocracia, xenofobia, homofobia, transfobia, etc (LIMA, 2020)." 

O recorte acima nos traz uma reflexão importante para que sejamos capazes de seguir respondendo a pergunta do primeiro parágrafo: as violências partem de outrem para o outro, sendo articulado na maior parte das vezes para alcançar pessoas e grupos específicos da sociedade. Os equipamentos de atravessamentos e de violência se perpetuam dia após dia e são passiveis de gestão individual, coletiva e até mesmo do Estado. Se para violentar a existência plural de um ser biopsicossocial partimos do olhar de que alguém esteve no local de fragilidade e alguém no local de manipulação da fragilidade, respondemos a pergunta: todes nós deveremos velar pelo outro. Nos cabe, pelo menos como portadores de humanidades, assegurar a segurança de outros não replicando violências silenciosas, não reproduzindo atravessamentos violentos e participando do construto diário de ambientes seguros. 

Luana Lima em seu livro intitulado "Deverei velar pelo outro? Suicídio, estigma e economia dos cuidados" aponta o olhar para dados, realizando um levante de aportes teóricos importantes para o meio social e para as ciências da saúde, tecendo críticas relevantes aos sistemas de saúde aos níveis de atenção à saúde nos seus limites em acolhimento e referenciamento, mas, também, nos mostra que algumas atitudes - ou a ausência delas - também recriam narrativas que fogem ao afeto. A violência está sistematizada e força a humanidade a permanecer presa na subjetividade, retirando da cena a possibilidade de acolhimento, enfraquecendo o sentido de rede, de acolhimento e de apoio. O fato é: não estamos velando pelo outro, mas estamos construindo novas potencialidades e reivindicando novos parâmetros para tecer respostas diante de tudo aquilo que nos faltou, que nos limitou e nos fez acreditar que individualizar seria melhor do que retomar o espaço na coletividade.

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LIMA, Luana. Deverei velar pela outro?: Suicídio, estigma e economia dos cuidados. 1. ed. [S. l.]: Dialética Editora, 2020. 184 p. ISBN 978-65-874-0394-6.

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