SÓ VENCE QUEM LUTA: E AS RELAÇÕES DE PODER?

By Tiago Ferreira - 10.8.23

Eu sei que só vence quem luta. Sei também que é mais fácil assistir do que viver a luta de outrem. Sei ainda que é prazeroso olhar para outro e desejar sorte - desconsiderando, inclusive, maneiras de auxiliar a sorte desejada de encontrar seu necessitante. A possibilidade de assistir de longe é muito tentadora. Quem quer se envolver, se cansar, se desgastar ou se indispor? Quem quer se envolver, emprestar, facilitar, viabilizar ou fazer algo além daquilo que já estabeleceu como limite? O envolvimento é cansativo, é exaustivo, demanda esforço e exige demais para que seja algo realmente desinteressado. Para além da vontade, sentir necessidade de se envolver é se ver sentenciado ao fado do outro - e quem quer se ver para além das suas próprias demandas? O mundo aprisiona cada um no seu próprio caminho, sendo necessária a individualidade para que seja possível manter-se em pé.

"Maria estava parada há mais de meia hora no ponto de ônibus. Estava cansada de esperar. Se a distância fosse menor, teria ido a pé. Era preciso mesmo ir se acostumando com a caminhada. O preço da passagem estava aumentando tanto! Além do cansaço, a sacola estava pesada. No dia anterior, no domingo, havia tido festa na casa da patroa. Ela levava para casa os restos. O osso do pernil e as frutas que tinham enfeitado a mesa (EVARISTO, 2020)."

O caminho também carrega a subjetividade como condicionante, sendo o entender dos passos de outrem uma responsabilidade restrita a ele mesmo. Não ocupamos o espaço de julgadores das lutas travadas por outras pessoas, assim como não nos é garantido o direito de narrar histórias que não tenham sido escritas por nós. Ocupamos espaços e articulamos maneiras de permanecer. A solidão, temida e evitada, flerta com a possibilidade de ser desfeita. Sendo o único sentimento que fomenta esforços para ser descaracterizado, a solidão também precisa encontrar o sujeito empático. Sei que só vence quem luta, mas existe um ranking que determina quem luta mais? Sei também que é mais fácil assistir do que viver a luta de outrem, mas existem possibilidades de subsidiar amparo? Talvez esse seja o texto com mais indagações que permanecerão sem grandes respostas, pois ainda busco compreender a rede que circunda pactos narcísicos dentro da minha própria história.

"[...] Maria estava com muito medo. Não dos assaltantes. Não da morte. Sim da vida. Tinha três filhos. O mais velho, com onze anos, era filho daquele homem que estava ali na frente com uma arma na mão. O de lá de trás vinha recolhendo tudo. O motorista seguia viagem. Havia o silêncio de todos no ônibus. Apenas a voz do outro se ouvia pedindo aos passageiros que entregassem tudo rapidamente. O medo da vida em Maria ia aumentando... (EVARISTO, 2020)"

No final do dia existe um fechamento de contas para cada um de nós. Buscamos compreender como protagonizamos nossa existência, como encaramos o existir do outro e - de inúmeras maneiras - buscamos paz nas ações que supostamente oferecemos ao outro como amparo. Queremos parecer boas pessoas o tempo todo, construímos percepções a cerca daquilo que é ser bom. Temos certezas intensas a respeito dos nossos papeis sociais e já crescemos com certos limites estabelecidos sobre a individualidade. Mas, se considerarmos o nosso próprio local de fala e escuta, aquilo que oferecemos como suporte é o máximo que poderíamos ofertar? Hoje existe um movimento nas redes sociais que determina que cuidar-se em primeiro lugar é a via correta de permanecer saudável e articulando a sua própria existência no seu próprio espaço. Se cuidar e se fortalecer não são estratégias que retiram de nós a responsabilidade sobre o afeto que entregamos ao outro, sobre os nossos métodos de amparar aquilo que não nos pertence e, acima de tudo, não nos retira a potencial possibilidade de carecer amparo.

No final das contas, as respostas podem estar contidas no poder. Qual o espaço de poder que é ocupado? O que posso fazer? O que quero? O que devo? É sobre a individualidade de cada um de nós, mas, de contrapartida, também é sobre a responsabilidade que portamos todos os dias. As questões levantadas nesse parágrafo partem da visão de que o poder determina não só a ação - a vontade de agir -, mas também delimita o local daqueles que não podem sair de onde estão - ou de onde foram colocados.

"[...] Maria queria tanto dizer ao filho que o pai havia mandado um abraço, um beijo, um carinho (EVARISTO, 2020)."

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EVARISTO, Conceição. Olhos d'água. 1. ed. [S. l.]: Pallas, 2020. cap. Maria, p. 39-42. ISBN 9788534705257.

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