MINHA GENTE RESISTE E EU ESCREVO SOBRE EXISTÊNCIAS

By Tiago Ferreira - 5.8.23

"[...] Naquele momento, você não sabia bem o que queria fazer. Na verdade, você estava perdido, porque, até ali, a vida não passava de um amontoado de obstáculos que você tinha de superar. Resistir fazia parte da sua vida e você nunca havia se questionado por que as coisas eram assim. Nunca se questionou por que era pobre, nunca se questionou por que vivia sem pai. Nunca se perguntou a polícia o abordava na rua com tanta frequência. A vida simplesmente acontecia e você simplesmente passava por ela (TENÓRIO, 2020)."

Ser mais um na multidão é um recurso que atualmente recuso veementemente. Só sou capaz de recusar esse local de invisibilidade porque descobri que jamais estive invisível. Meu corpo está marcado até meu último dia de existência, assim como estiveram aqueles que antecederam a minha existência. Hoje questiono o viver como um privilégio, ainda mais daqueles que podem escolher como seus corpos preenchem espaços, quais espaços acomodam a sua existência e como podem despojar do local mais confortável para expor aquilo que chamam de personalidade. Talvez, numa leitura apressada, fique entendido a inveja como uma possibilidade, mas o ponto é: a quem pertence o direito de viver?

A minha vida estará para sempre atrelada a causas, a casos, a dados, a narrativas e a preâmbulos específicos. Os marcadores me marcam. No sentido máximo de existência, deverei resistir. É como se eu estive abrigado em dados - ou em uma história - que convergisse para a impossibilidade de simplesmente passar pela vida. Sou constantemente indagado sobre os locais que pretendo ocupar, sobre os sonhos que sustento e sobre as expectativas que ainda mantenho para fomentar a esperança. Provocações. Perguntas que cerceiam o meu amanhã soam como provocações, pois, de acordo com o que existe para o meu local de existência, as chances de eu preencher um futuro próspero são quase que remotas. O que me sobra? Resistir. Dia após dia preciso ser resistência. Como se resiste em espaços que te punem por características que constituem o seu viver? (...)

 "[...] Foi Arthur de Gobineau quem afirmou que as raças protagonizaram as lutas pelo poder e que, portanto, haveria raças inferiores e raças superiores. Depois dele, outros estudiosos da raça vieram e agregaram mais valores científicos para comprovar que os negros pertenciam a uma raça menor. Então, o professor Oliveira projetou um crânio na lousa e perguntou se era possível definir o caráter de uma pessoa apenas olhando para aquela imagem (TENÓRIO, 2020)."

E a gente não se encolhe dentro daquilo que determina nossas lutas diárias. Ainda me vejo conflitante em relação ao meu conceito de viver e (sobre)viver, mas volto a minha força àquilo que ainda me aprisiona dentro das impossibilidades que me rodeiam. O movimento é de rompimento de grilhões e elevação de coroas. Evoco para esse parágrafo a nomeação do meu corpo: preto, assexual, periférico. Basta essas informações para que a minha narrativa seja justificada - como se fosse necessário algo desse tipo. Sou filho de uma mulher preta, neto de uma mulher preta, bisneto de duas pessoas pretas e existo depois de todes eles terem resistido. Não quero pensar nos privilégios que cerceariam a minha existência se eu tivesse um outro tom de pele ou estive numa normatividade sexual, mas quero aprender a discorrer sobre as dádivas que ainda aprendo cotidianamente com a história que escuto da minha mãe e escrevo com meus próprios passos. Venero meus heróis e acredito no simples ato de permanecer em pé. Minha gente resiste e eu escrevo sobre existências.

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TENÓRIO, Jeferson. O avesso da pele. 1. ed. São Paulo: Companhia Das Letras, 2020. 189 p. ISBN 978-85-359-3339-0.

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