MONSTRUOSIDADE, REJEIÇÃO E SOLIDÃO

By Tiago Ferreira - 12.8.23

A normatividade impõe que todes que não se encaixarem em seus rigorosos padrões deverão ser isolados. Não falo do isolamento baseado na solitude, mas menciono o isolamento inteiramente pautado na solidão. É esperado que sejam excluídos todos aqueles que não conseguem se adaptar - e essa solidão pode ser algo natural ou compulsório. O fato é que a maior parte daqueles que estão abrigados na normatividade possuem um viés claramente discriminatório em seu olhar, podendo caracterizar os não normativos como monstros. Pois bem, eu sou um monstro.

"Eis que gritava
Estava certa? Estava errada?
Constantemente discordava
Do que era obrigada

Fazia barulho
Tirava sua rebeldia do silêncio
E era shhh pra cá shhh pra lá
Tentaram a calar

Mas a menina era feita de garra
De força
De resistência
Competência

Na vida se perde, se cria e sempre se transforma
Injustiçada, perdeu sua voz
Criou uma nova persona, fez barulho
Se transformou em poeta que contestava

Indignada, revoltada
Mais uma vez gritava
Continuavam pedindo silêncio
E ela continuava fazendo
Barulho (SANTOS, 2018)."

Estar encaixado dentro de grupos ou ser absorvido em ambientes é algo que naturalmente demanda traquejo social. A articulação para a aceitação começa, geralmente, pelo sujeito a ser aceito. Na sequência do processo de absorção fica como esperada a articulação dos pares. Escrevendo esse parágrafo me dei conta de que as convenções sociais demandam bastante esforço do sujeito a ser absorvido, podendo até mesmo parecer que estamos num jogo em que é impositiva a tarefa de parecermos palatável para alguém. Já cheguei a me ver como um produto em que eu precisava me vender, apontando todos os meus predicados na esperança de ser comprado por alguém. O que é estar encaixado? Ao decorrer dos anos entendi esse processo como sendo parte fundamental de uma articulação necessária de sobrevivência, mas também entendi como uma série de atravessamentos que possuem um objetivo em comum: silenciar o que sou para dar voz ao que queriam que eu fosse.

É claro que agora compreendo que não preciso me invalidar para caber em qualquer que seja o espaço, podendo, inclusive, me levantar, pegar as minhas coisas e deixar a cena - caso perceba que minha existência esteja sendo questionada. De todo modo, nunca conseguirei fugir da solidão baseada na rejeição ou na reprovação de quem sou, estando suscetível a permanecer na exclusividade da minha própria companhia. O conceito de pares permeia minhas investidas pelo mundo social, mas nem sempre tenho o potencial para encontrar os meus iguais. Aquilo que defino como igual é subjetivo ao que sou, correspondendo a todas as características que a sociedade repudiou, ignorou e/ou rejeitou em mim. Eu poderia elencar todas características, mas prefiro te convidar a pontuar tudo aquilo que rejeitam em você. Hoje ainda não estou inteiramente abrigado no meu círculo de segurança, porém percebo a rejeição com um olhar mais perspicaz:

"O epistemicídio é, para além da anulação e desqualificação do conhecimento dos povos subjugados, um processo persistente de produção da indigência cultural: pela negação ao acesso à educação, sobretudo da qualidade; pela produção da inferiorização intelectual (...). Isto porque não é possível desqualificar as formas de conhecimento dos povos dominados sem desqualificá-los também, individual e coletivamente, como sujeitos cognoscentes¹. E, ao fazê-lo, destitui-lhe a razão, a condição para alcançar o conhecimento "legítimo" ou legitimado. Por isso o epistemicídio fere de morte a racionalidade do subjugado ou a sequestra, mutila a capacidade de aprender etc. (CARNEIRO, 2005)".

Não escondo que sei respostas, não escondo que tenho questionamentos, não escondo que possuo críticas e não escondo que tenho valores e crenças. Assim como aqueles que rejeitam o que sou, carrego em mim a natureza de preenchimento de espaços, não tendo que necessariamente pertencer a todos os locais que ocupo. Estar na solidão é um fado que carrego por ser colocado nela de maneira avidamente compulsória, mas tecer as críticas que me façam capaz de compreender os porquês de permanecer excluído me torna ainda mais resistente diante das dores. Encontrar meus pares é uma ação que quase sempre deixo em segundo plano, pois, geralmente, estou atento a combater o apagamento sistemático da minha presença. Me faz necessário evocar aqui uma percepção poética sobre a possibilidade de estar em um círculo seguro: permanecerá em mim o que for de mim.

¹ É o ser pensante, a pessoa que tem a capacidade cognitiva para aprender, saber e conhecer algo ou alguma coisa. Por outro lado, o cognoscível consiste no conhecimento em si, ou seja, a coisa que é passível de ser conhecida pelo sujeito cognoscente (www).

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CARNEIRO, Sueli. Construção do Outro como Não-Ser como fundamento do Ser. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.

SANTOS, Stefanie. Além da Terra, Além do Céu. 1. ed. Vol. 3: Chiado Books, 2018. Poema: Os sons, p. 347. ISBN 978-989-52-4027-2.

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